29.6.23

Não há sangue órfão

Royal Black, “Out of the Black”, in https://www.youtube.com/watch?v=bSdtvfBQd6c

Não há geração espontânea. Carregamos um legado, ou parte de um legado, mesmo que seja contra a vontade. São os eflúvios da memória que compõem uma identidade com a paciência do tempo duradouro. A identidade não se faz a partir de uma folha em branco. Por mais que seja cultivada uma forma própria de ser e de estar, não se nega a validade do sangue de que todos somos feitos.

Um sotaque, um costume social, uma música, uma celebração coletiva com direito a calendário, personagens históricas que ajudaram a cimentar uma pertença – por maior que seja firmada a antinomia, o sangue que corre nas veias não pode ser recusado nem recusada pode ser a hereditariedade desse sangue. 

Desta casa da partida vamos ao encontro de duas vias possíveis. Há os que aceitam, acriticamente, o sangue herdado. E os que mantêm a recusa desse sangue, dizendo, em sua defesa, que é órfão o sangue que corre nas suas veias. Aqueles embebem uma certa forma de estar que é típica do lugar em que vivem e não se sublevam para a questionar. Estes afastam-se dessa maneira de estar, repudiam a forma automática com que os costumes e o cimento social passam de geração em geração. 

Os que convocam o sangue órfão, de tanto se oporem à ideia do irremediável sangue legado, não alcançam a lucidez de que nem tudo se arruma num raciocínio binário. Não reconhecem um ponto algures equidistante entre a acrítica pertença e a sua recusa radical. Uma identidade não exige adesão integral aos elementos que tenham sido inventariados como seus marcadores genéticos. Pode haver afastamento de alguns e aceitação, mesmo que não descomprometida, de outros. E adesão em diferentes camadas aos marcadores dessa identidade.

A identidade não é constante. O sangue que se transmite de geração em geração sofre mutações. O tempo e a circunstância são a caução dessas mutações. Os que dão cobertura à dissidência de certos elementos constitutivos de uma identidade podem estar, sem darem conta, a contribuir para a reconfiguração dessa identidade. Não podem reivindicar, de si mesmos, o sangue órfão. A humildade, ou apenas a recusa obstinada que trava a lucidez, impede que se reconheçam como agentes da mudança. Não é órfão o sangue que percorre as suas veias. É sangue em parte metamorfoseado, em parte herdado de diferentes camadas ancestrais. 

São os espíritos dados à abertura que compõem a pauta em que se cinde o ancestral com o novo como o caldo onde se aviva a identidade reinventada.

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