9.6.23

Às torres de Babel

The Comet is Coming, “Code” (live at Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=_gtcXU5VSnM

I. Quando éramos pequenos, tomávamos Melhoral sem estarmos doentes. Nenhum adoeceu por tomar tanto Melhoral. Nenhum chegou à idade adulta a precisar de aditivos ilícitos. O doping não era para nós.

II. As cordas dos violinos pareciam teias de aranha. Os dedos adestrados dos violinistas tocavam no verso em que chegava o vento.

III. Sabia que, no futuro, fugia dos vultos perenes que assombram as almas apequenadas. Dizem que as pessoas começam a minguar depois de certa idade. Era testemunha em carne viva: sabia que a sua alma fora maior, como sabia que ela ficara puída com a controversa desaliança com o tempo. Dele não se esperassem conselhos. Era o desaconselho em pessoa.

IV. Pai, por que ainda há monarquias? O pai não sabia como responder à filha. Não podia falar de atavismos, ou de anacronismos, ou de formas datadas de reger um país. Eles não eram exclusivos das monarquias. E se a filha lhe perguntasse pelo inventário das fragilidades da democracia, será que pedia conselho sobre o seu contrário?

V. Pela matrícula, o automóvel era novo. E já estava em cima do reboque. Às vezes, as ruínas morrem à nascença.

VI. Aquela pose grave, denotando a natureza tão séria do discurso que se preparava para ler, o olhar que parecia passar em revista cada pessoa sentada na plateia, o olhar que pedia contemplação e, no final, imperativa ovação. Era muita a forma, mas pouca a substância que rimava com tanto formalismo decadente. Há quem não passe de um enfeite, com pouco para dar além do papel de embrulho. E, todavia, fazem-se passar por senadores ou candidatos a sê-lo.

VII. Por que tinham as mulheres antigas sete saias e depois pariam antes de serem casadoiras? (Das perguntas metodicamente alinhavadas pela filha.)

VIII. Dizia: estou empenhado num esgrima contra os meus paradoxos. Sinto-os a adejar, arfando o ar tropical que enche os corpos de suor pegadiço, sinto-os como se fossem pregas entre as vírgulas que compõem as frases, e não os sei nomear. Já chego a acreditar que é melhor deixar os paradoxos levitarem sem paradeiro certo e ser por eles levado até a uma enseada que mergulha no poente. Só para ver se à noite as estrelas que ocupam o céu enegrecido emprestam uma pista sobre os paradoxos. 

IX. O armazém estava cheio de mercadoria por expedir. As pessoas tinham medo de usar o verbo comprar. Não sabiam do futuro. Nem lhes competia saber, que o grande líder, de braço dado com os ajudantes que industriam as encomendas do grande líder, tinham anunciado que os maus pressentimentos são maus, devem ser atirados borda fora.

X. Querias uma torre de Babel com um roteiro para não te perderes? Ou querias que a torre de Babel fosse um mistério à prova de sondagens, permanentemente inacessível (só assim condiz com a sua cerviz)? Antes de responder, advertiu: aquela não seria a resposta esperada pelos que tutelam os costumes. E respondeu: queria que a torre de Babel fosse à prova de incêndios e de inundações. Para que se mantivesse viva e democraticamente abrisse as portas aos interessados.

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