26.6.23

O comboio que partia vazio

Blur, “The Narcissist” (live Primavera Sound 2023), in https://www.youtube.com/watch?v=-dmXqSBUpcg

O cais puído animava os viajantes. Eles partiam e chegavam, entrecruzavam-se numa miríade de destinos. Eram tantas as casas da partida e da chegada, mais ainda as casas da chegada que se haveriam de constituir casas da partida. Os comboios não dormiam. Mesmo quando as composições estavam estacionadas num ramal, os comboios estavam sempre de piquete. 

Todos os dias, o comboio das catorze e quinze partia sem gente. Só tinha três carruagens. Eram de mais. Mas eram sempre atreladas três carruagens. No cais, só se anunciava a hora da partida. Era o único comboio que partia sem destino. Não se sabia se era por isso que ninguém embarcava no comboio das catorze e quinze. E ele iniciava a marcha, pontualmente, para a viagem de cinquenta e cinco minutos. Zelosamente vazio. Nem sequer tinha direito a revisor: já todos sabiam que o comboio ia sempre vazio.

Fosse dia de semana ou fim de semana, o comboio era calçado nos carris e ultrapassava as junções, os apeadeiros, as estações, ia deixando a paisagem para trás. Parava em todas. Os passageiros que aguardavam pelo comboio esperavam pelo comboio que vinha a seguir. O comboio vazio arrefecia a marcha antes de estacionar no cais, era como se olhasse para os passageiros que aguardavam pelo comboio seguinte e suplicasse para não perderem tempo, para se servirem dele. Se fosse preciso, levava-os aonde fosse preciso. Nem que tivesse de se desviar da rota e fizesse um atalho. As pessoas eram surdas à convocatória. Ou a súplica do comboio perenemente vazio não se fazia ouvir, por mudez sua.

Cinquenta e cinco minutos depois, o comboio encontrava-se com o destino. O destino parcial. O comboio tinha de fazer o caminho de volta. Vazio, porque não era aceitável, aos olhos dos cânones da igualdade, que o comboio fosse vazio para um lado e viesse com passageiros na volta. Ele não se importaria, aprendeu que a sua serventia é transportar passageiros. Nunca se perguntou ao comboio sempre vazio se ficava angustiado por ir sempre vazio. 

Quando chegava ao cais da partida, agora em forma de chegada, as carruagens eram desmobilizadas e levadas pelos funcionários da manutenção para outras linhas, para outras composições, para outras paragens. As carruagens sentiam então o calor das pessoas, já sem o cimento de serem o comboio das catorze e quinze. 

O comboio partia sempre vazio. Mas nunca chegou a ser um comboio fantasma. Só faltava decretar as catorze e quinze uma hora deserta.

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