7.6.23

É melhor o prato vazio do que as lentilhas que te queiram oferecer

Pulp, “Underware” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=IQg0STk_pb8

Há os desconfiados da generosidade que os outros praticam. Não acreditam que a bondade seja genuína. Ele há tantas segundas e terceiras e quartas intenções, e assim sucessivamente. Metem nos ombros a desconfiança metódica para não serem vítimas da ingenuidade. Ou desconfiam, porque a mercantilização que tomou conta do sangue da sociedade exige que tudo seja mercável. Até os favores que se ficam a dever, com os juros devidos pelo tempo decorrido.

Diz-se: não se recusa um prato de lentilhas. Não fica claro quem não deve recusar as lentilhas: é quem é demandado para as oferecer, ou o destinatário da liberalidade? Para não serem feridos os ditames da igualdade, dir-se-ia que a incumbência rege ambos por igual. Outros, com propensão para o socialismo, certificam a assimetria: é sobre os abastados, ou os que, não o sendo, têm posses para alimentar a solidariedade, que é validado o encargo. Ainda há os terratenentes que não aceitam os recursos esbanjados, exigindo dos recetores a mesma diligência dos que exercem a bondade. Não devem deitar as lentilhas ao lixo, há quem esteja à míngua e não coube no critério da distribuição das lentilhas.

A meio da meditação, a ninguém importa perguntar se quem recebe o donativo gosta de lentilhas. 

Das hipóteses terçadas, considere-se a validade dos que desconfiam da prebenda porque não estão seguros que o favor não seja cobrado mais tarde. Têm legitimidade para suspeitar do sinalagma. A generosidade não combina com segundas e terceiras e por aí fora intenções. Ninguém pode medir as intenções do outro, a menos que peticione para o declarar – e, mesmo assim, não garante que o declarado não seja mentira. E se à generosidade corresponder o ónus diferido da contraprestação, não se atesta com que juros o favor vem a ser cobrado. Estes contratos não são contratos (ou é a generosidade que não é contratualizável). Se se mantiver elevada a cancela da desconfiança, quem pode garantir que a generosidade não vem a ser cobrada com juros usurários? Tão usurários que não se sabe como pagá-los. 

É melhor o prato vazio do que as lentilhas que te queiram oferecer: com o prato vazio, és o tutor da escolha, decides o que vai preencher o prato. E não ficas a dever favores (e juros incuráveis).

Sem comentários: