31.7.23

Amoras como manhãs

Royal Blood, “Figure It Out” (live at Glastonbury 2023), in https://www.youtube.com/watch?v=GSQo5zlAe2w

As amoras acordam com o pressentimento da manhã. Inspecionam o estertor da noite, querem saber se a noite apanhou por junto a métrica das almas hibernadas no sono. Estão à espera de ser colhidas. Sabem que vão ser colhidas. 

A afirmação do efémero não as intimida. As amoras convenceram-se da sua efemeridade. Quando amadurecem e as pessoas fogem dos caminhos principais para saberem onde estão as amoras, elas sabem que atingiram o apogeu. É quando estão no apogeu que a efemeridade, tão implacável, desaba sobre as amoras. E elas não se amiseram. 

Os grandes arquitetos ensinaram que as amoras são como as manhãs, santuários onde se congemina o período vespertino – onde, dizem as pessoas que não mantêm relações diplomáticas com a manhã, tudo começa a ser montado para ganhar significado. É como as amoras: são vistosas, os gomos carnudos e quanto mais negros mais pujantes na doçura e, todavia, enquanto são extremidades das ramagens são apenas bucólicas. Cumprem-se ao saberem que são a razão do êxtase de quem as consome. Esmagadas pelas bocas insaciáveis, oferecem uma tempestade de aromas.

As amoras, ensinadas pelos grandes arquitetos, não questionam a lição. Aceitam o papel para que foram criadas. Resignam-se a serem transformadas numa papa digerida pelas entranhas de quem as meter à boca. São como as manhãs. Para os boémios que habitam a noite, a manhã é um epílogo – mas esses andam em contramão, a maioria recebe a manhã como um lampejo que os extrai ao sono. 

Os que não mantêm relações diplomáticas com a manhã acusam-na de vários delitos: interrupção do sono (o que, no caso de o sono ser trespassado por pesadelos, é um serviço público prestado pela manhã), desativação da preguiça, ativação dos sensores que anteveem o penoso dia de trabalho (no maior dos paradoxos: está na moda dizer que se trabalha para lá da conta – como medalha da importância do trabalho prestado – mas são grandes as celebrações que acompanham a sexta-feira e muitos os funerais que se anunciam à segunda-feira). 

Sem a manhã, os pusilânimes não conseguem arrumar a tarde e, se for caso disso, a noite. As manhãs são como as amoras, na sua superior estética todavia não reconhecida. Só quando acabam é que lhes dão valor.

28.7.23

A salvação de Sócrates

Massive Attack ft. Sinéad O’Connor, “Special Cases”, in https://www.youtube.com/watch?v=OQ31yNp6Nao

As linhas no papel estão desfocadas. O nevoeiro pousara na folha. Embaciado, o papel contamina o olhar, também embaciado. Nestas alturas – ponderava com o método possível – as ideias são órfãs. Uma nebulosa açaima a lucidez, como se fosse preciso ordenar as palavras que desalfandegam a lucidez. Não há modos diferentes de o dizer. A menos que pela janela espreitem espíritos ávidos com o seu olhar imparcial e sussurrem a água pura tirada à fonte.

Se a folha de papel está corrompida, o que se dirá das palavras que vierem a ser vertidas na folha? Os consumidores de lugares-comuns, os profetas da obviedade, respondem sem hesitações: as palavras são corrompidas. Estão errados. Das arcadas do tempo, uns vultos perenes insistem na perenidade das suas lições. Insistem: as pessoas devem olhar sob o véu, é lá que se sublevam os amotinados que não aceitam a leviandade do óbvio. Segundo esses vultos intemporais, as folhas podem ter sido corrompidas, mas ainda é possível escrever as palavras sem ser num plano esventrado.

Mas as pessoas não acreditam. Bolçam os pergaminhos (o que julgam ser pergaminhos): a causa e o efeito não podem ser obliterados pela dicção dos sábios. Questionam os sábios: o que sabem eles? O que podem dizer em sua defesa, se estão mortos? Os seus discípulos falam por eles? Fazem-no na módica condição de intérpretes. O fio condutor esgaçado não é o plano convincente para guardar em memória as ideias; até porque são abjuradas por serem arcanas, como se o caldo em que medra a História do pensamento estivesse prescrito pelo anátema do futuro.

Alguém advertiu que é preciso congeminar a salvação de Sócrates. Aceitam-se a concurso as duas leituras da proclamação. A salvação de Sócrates, para que ele não se extinga à mercê da estultícia dos algozes do futuro que, à medida que o futuro se asfalta, vão encerrando o passado na desmemória. Ou a salvação de Sócrates que nos inventaria como seus sujeitos, para que não nos sujeitemos à aleatória vontade dos apóstolos malsãos dos lugares-comuns.

Ou então, juntamos as duas possibilidades. E salvando Sócrates dos algozes, deixamos que Sócrates venha em nosso socorro. Para que as linhas irregulares não sejam o veneno das palavras que se deitam na folha de papel. 

27.7.23

Provocação (por vocação)

Everything But the Girl, “Noting Left To Lose”, in https://www.youtube.com/watch?v=M6QKZJeK-5w

No ante pé da dilação, uma marca de água como se fosse o timbre da pele: o princípio geral da provocação.

Dá-se asas à perplexidade quando é evocada a diplomacia metódica. Não se diga que a beligerância é preferível. Quem inventou os arsenais é o pior verdugo da espécie. Quem os continua a utilizar devia ser condenado a trabalhos forçados, despojado de identidade. A diplomacia metódica é o pretexto para não sermos interpelantes: devemos anuir nos postulados apresentados em favor da normalidade; se formos agentes incomodativos, nas constantes interrogações que desafiam os categóricos imperativos, teremos os agentes dos costumes à perna, a um passo curto de sermos atirados para o exílio. 

Por isso, provocação. Por vocação. Não como ato de crueldade. Não para desqualificar os que forem apanhados no meio do fogo cruzado de provocações. Até porque os agentes de provocação devem estar preparados para serem vítimas da provocação dos outros. Para dar corda a um labirinto de provocações, para gáudio das sinapses que se exercitam na melhor das ginásticas, a ginástica intelectual. 

Ser agente provocador não é amesquinhar os que são provocados. Não é um insulto. Não é escarnecê-los gratuitamente. É convidá-los a recusarem o arnês que aquiesce conforto em troca de obediência. Em troca de um lugar sossegado que não desafia tabus e convenções, que aceita a monotonia dos diálogos de surdos, que aposta no desfile de salamaleques e no hipócrita elogio do outro (quando, em privado, do outro se dizem as coisas piores). O agente provocador desmente o lugar consagrado à hipocrisia. Recusa o império de um pensamento dominante, temendo que seja transfigurado em pensamento único. O melhor critério para ditar a prescrição desses pensamentos deformadores é somar provocações – até, se preciso for, verter provocações em cima do próprio agente provocador, que se desafia a não aceitar a autocomplacência que o isentaria de ser sujeito a provocações.

É uma vocação que não aceita credenciais. Não é preciso tirar cursos para ser provocador. A vocação, como as outras vocações, sabe-se inata, fermentando por dentro das veias. Os que se entediam com a normalidade flagrante, encontram em si os rudimentos desta vocação. Para serem titulares da provocação, por vocação.

26.7.23

Subir para baixo sem ser o avesso de um pleonasmo (ou um recurso discursivo)

Anne Clark, “As Soon As I Get Home”, in https://www.youtube.com/watch?v=0MJWFztQwn8

Um passo atrás pode ser a tradução de dois passos em frente. Os números não se substituem à métrica que importa, a métrica da qualidade. Às vezes, a escada obriga a que seja descida, sem que ao descer os degraus se esteja a andar para trás. Só temos de saber aonde queremos chegar.

São as casas onde temos morada que configuram o tamanho dos números. Ao mudar de casa, a significação dos números pode não corresponder à esquadria da aritmética. Um pode ser maior do que dois. Quando um é maior do que dois, a qualidade vinga sobre a aritmética. Sopesam-se os fatores que importam: é preciso aferi-los para que o juízo não fracasse no logro da distorção. Sem essa lucidez, os viés podem ocupar o lugar desejado. É preferível ser sargento numa casa nobilitada a general noutra condenada à decadência.

Não é só pela decadência da casa de partida que os passos consequentes se movem. O raciocínio não obedece, como seu primeiro cais, a uma desconstrução. Como se fosse preciso encontrar argumentos alicerçados nas fundações puídas da casa de partida. Essa é a casa de partida. Um largo património que estrutura o passado, um património que não se renega; toda a ossatura foi sedimentada na casa de partida. Não são os incidentes que anulam a ossatura, nem a casa de partida como o lugar que a proporcionou. A memória não pode ser insultada desse modo. É a memória que cauciona o presente, que abre as portas para o futuro fundeado noutra morada.

Mais importante é saber da casa da chegada. Compará-la com a casa de partida. Saber que uma casa é vetusta não a torna atávica. A casa mais nova pode ser a casa envelhecida por estar tão puída, refém de um envelhecimento precoce, as teias de aranha a açambarcarem os alicerces dessa casa, arqueando-se sobre o dorso cansado dos seus habitantes. É como a lógica adulterada da aritmética: um é maior do que dois; o novo está obsoleto e o vetusto veste o vento fresco que logrou habitar as suas paredes.

Quando se dá um passo atrás ao povoar a casa de chegada, esse é um passo em frente. Por mais que um passo em frente na casa de partida estivesse contíguo, empreendê-lo seriam dois colossais passos atrás. Confirmando-se que é possível subir para baixo sem que isso traduza o avesso de um pleonasmo.

25.7.23

A segunda pele

Kiasmos, “Jarred”, in https://www.youtube.com/watch?v=Km5nbbtQVDo

Broto do crepúsculo escondido, a fonte que não se exaure nem que seja acossada por intempéries ávidas. A mesma cor desmente o sangue que se encontra no apeadeiro da lonjura. Dizem que só temos uma pele. E eu desminto: por dentro de mim, encontro uma segunda pele. A pele heurística, a pele abrigo dos contratempos que não trazem aviso, a colossal pele refúgio. 

A segunda pele não se incomoda com a pele que a antecede. Sabe que essa é a pele que se oferece aos agravos, a pele estética que desenha o corpo à mostra, a pele que mostra uma identidade. Sob essa pele, em forma de reserva inesgotável, a pele invisível e, todavia, coriácea. A pele impermeável às tempestades que congraçam o modo do tempo. Como se fosse a rocha impenetrável que escuda um desfiladeiro, a rocha que se despenha pelo alcantilado terreno e o ampara: assim é a segunda pele, um salvo-conduto que não pede permissão.

A segunda pele nunca dorme, é constante a sua atalaia. Se os fantasmas investirem, a segunda pele não é tomada em desprevenção. Ativa as defesas que anulam a investida dos fantasmas. É da sua natureza ser à prova de sono, um farol perene que nunca se extingue nem perante as piores tempestades ou as privações que ameaçam cercear a existência. A segunda pele imagina mapas diferentes, marés que não adulteram os verbos armilares, inacessíveis montanhas cobertas de neve (epítome da serenidade intemporal), miradouros povoados por almas sedentas de conhecimento, estrofes que compõem o paradeiro por determinar. 

Dizem que só temos uma pele (insistem). E eu desminto (insisto): não precisamos de escavar a pele à mostra para sabermos da segunda pele. Os arrepios não vêm da primeira pele, são incendiados pela segunda, a mais sensível, pele. As sensações que escapam à sindicância das palavras procedem da segunda pele. O desejo do futuro é ateado pela segunda pele. Se pudesse ser tatuada, a segunda pele continuava indelével, a tinta dura da tatuagem incapaz de se deitar nos seus poros. 

É desta gramática que a segunda pele se anima. Para povoar as pessoas e delas ser testa-de-ferro, a discreta conceção retratada num estuário sem moldura. Porque a segunda pele é à prova de fingimento.

24.7.23

Escolta

Portishead, “Seven Months”, in https://www.youtube.com/watch?v=vn8WRkcgfMc

De um lugar que não havia memória, levantavam-se os corpos ausentes para o exílio intencional. Os muros do futuro jogavam-se contra as centelhas disfarçadas. O memorial, uma forma de estuque que fazia de conta que era parede, definia as baias. Era preciso marcar os limites. Sem fronteiras (assim se ensinava), não éramos ninguém.

Mas havia dissidentes. Gente descontente, desconfiada dos grandes arquitetos que tinham em mãos a empreitada de trazer os gentios pela trela. Gente que pensava pela sua cabeça. Sem fazer do pensamento dissidente um território desconhecido que hipotecava os alicerces. Apenas queriam encontrar um cais a preceito sem terem de ser rebanho. Costuravam um terreno que não obedecia a mapas e a ordenanças. Chamavam-lhes párias. 

O que era mais importante: aquilo que eram aos olhos dos outros, assim treslidos, ou o que sabiam ser? Escolhiam a segunda hipótese. Eram escoltados pelo lastro a que pediam proteção. Podiam ser apóstatas, com certeza, e não se esperasse que fossem convidados para sinecuras ou embaixadas de variegada linhagem. Recusariam o convite, alguma vez existisse. 

(A menos que se traíssem, como estava documentado nos registos, deixando em aberto a hipótese de serem apenas apóstatas por fingimento, capitulando aos privilégios da sinecura. Esses nunca mais podiam pertencer a qualquer dissidência. Reputados traidores, uns cedendo ao aceno das vantagens imateriais da ostentação do poder, outros deixando a nu a sua essência.)

Sobre eles repousava a autoridade dos livros arregimentados para cimentar a divergência. Essa era a sua escolta máxima. Não perdiam pitada do tempo. Não perdiam a oportunidade de acarear as ideias que se opunham. Participavam da miríade de olhares que se entreabrem como grelha de leitura. Negavam validade a qualquer dogma que se inscrevesse na linha de montagem. Esses eram os primeiros a ser recusados. Com a escolta da pluralidade e o beneplácito da visão panorâmica que deitava mundo sobre eles. Desta escolta à prova de preço, instruíam o dedilhar meticuloso das páginas do mundo. E saboreavam, com incomparável deleite, desde o miradouro panorâmico, tanta paisagem limítrofe a perder de vista, sem horizonte por limite. 

21.7.23

As raízes ressequidas foram atiradas contra a maré-viva e sobreviveram

Black Country, New Road, “Basketball Shoes” (live in Paris), in https://www.youtube.com/watch?v=cQtZaTjXUB8

Lamentavam que se banalize o mal – e o que era o mal? Uma viagem ao interior das banalizações podia conceder a resposta. Não era essa a função procurada. O estatuto que fermenta no bucolismo das utopias não transige com o modelo convencionado. Andam em linhas separadas, muitas vezes em sentidos opostos. Falam idiomas que não comunicam entre si.

Se as árvores do parque fossem inspecionadas, e dada a linhagem centenária de algumas delas, encontrar-se-iam raízes ressequidas. Delas se diriam serem um anátema, as bainhas da decadência deixadas à mostra, para que nada seja fingimento. É não saber nada de botânica. As raízes parecem ressequidas. Se algum conhecimento dos espécimes do parque for acrescentado, deixando à mostra a revelação de centenárias árvores, as raízes ressequidas sinalizam a decadência irremediável dessas árvores. E elas, puídas, mostram como já lhes custa respirar.

Precisávamos de um exercício especulativo (porque impossível): arrancar as raízes ressequidas das árvores centenárias e atirá-las sem dissimulação para uma maré-viva iracunda. Para se debaterem com as ondas engalfinhadas do mar, submergindo e depois emergindo como se estivessem a emitir um sonoro SOS que as resgatasse da agressão do mar. As raízes ressequidas estavam à mercê do mar iracundo; os observadores atentos concordavam que as raízes ressequidas estavam condenadas pela maré-viva.

Desenganados, os observadores afinal desatentos seriam convocados para a entronização da antítese dos seus prefácios. As raízes ressequidas não ficaram sepultadas nos despojos da maré-viva. Deram à costa, espalhadas pelo areal desarrumado, dando um contributo para a desarrumação. Por muito que se tivessem debatido com a água espasmódica do mar e tivessem ficado à mercê do salitre corrosivo, os que recolheram as raízes atestaram que continuavam ressequidas.

As raízes ressequidas ensinaram que há fingimentos necessários. Toda uma experiência que arrasta o tempo ido e que resiste às cicatrizes, às vezes tumulares, que o tempo desavisado engasta na pele frágil das pessoas.

20.7.23

Qualquer dia (short stories #429)

The Go-Betweens, “Bachelor Kisses”, in https://www.youtube.com/watch?v=lIn3ZZzJACg

          A imensidão de uma alvorada: o gelo desfeito na exaustão da noite cede passagem à claridade que inaugura o dia. Ainda o silêncio. Ainda as ruas quase despovoadas. Um lampejo de ruralidade na cidade (não fosse o entrecruzar de cimento desmenti-lo). O dia apetece mais quando ainda está crepuscular, ainda costurando a escuridão e a luz clara que será a sua ideia. A falésia não se arremata no pudor das almas extraídas dos sonhos. O chão não é um fingimento. As árvores são de carne e osso. As pessoas que começam a despontar, quase todas estremunhadas, protestam contra a finitude do sono. Esboçam palavras que se arrastam na indolência. Não sorriem. Não pedem “por favor” o pequeno-almoço, o café, o jornal para poderem atestar os vários apeadeiros e personagens que desaconselham o mundo. Qualquer dia é um dia na antítese de um dia qualquer. É não trazer arqueado um peso intrigante que apavora o dia restante. É não dar importância à angústia da demora ou ao assalto intransigente de um atraso. É não haver calendário, mapa, intendência, razão que se digladie com a desrazão, um protesto contra as injustiças de variada espécie, o abismo da desigualdade. Um qualquer dia é o avesso de um dia qualquer. Não lhe tira as medidas, porque é indiferente. Se houvesse um miradouro para entretecer o dia que se candidata a ser um qualquer dia, os oráculos seriam deixados aos profetas e à sua ira, deixados na infâmia de um nada. O rosto de um dia raiado não precisa de maquilhagem. Não precisa de ser desfeiteado pelo disfarce. Atira-se de cabeça para a piscina onde o espera o tempo restante. Corrige-lhe as arestas, tanta a lucidez que se lhe abraça. E depois, para memória futura, deixa um cortejo de versos desimpedidos da fornalha onde se incensam os mitos exauridos.  

19.7.23

O palimpsesto é uma dádiva ou uma tortura? (Teoria geral das matrioskas)

Yard Act, “The Trench Coat Museum”, in https://www.youtube.com/watch?v=7P0YpeMPZ9g

Não amolecia. Não transigia aos ecos que evocavam sombras do futuro. As metades apartadas diziam que os hemisférios eram diferentes, como se outro fosse o património genético que lhes pertencia. As veias eram únicas, o sangue diferente. Sentia que não era apenas uma pessoa. Antes fossem várias as personalidades que o habitavam para não ser refém da pequenez.

Talvez pudesse ser apenas a insurgência contra a habilitação da rotina. Não queria ser a origem da sua própria rotina. Jogava com todas as forças contra os impedimentos da alteridade, mas não transgredia as luzes que permaneciam no fio do horizonte, evocativas das diferentes luas. Sabia que no sangue residia uma variedade de projeções, à medida das circunstâncias, à mercê dos corredores insondáveis que amadureciam a vontade. Não queria que um dia fosse igual ao seu consecutivo.

Às vezes, interrogava-se sobre o significado da multiplicidade de personalidades. Ora a considerava uma dádiva, ora pressentia tratar-se de uma tortura. 

Era dádiva porque o critério emprestava ângulos vários, uma roda-viva de tempos e modos, como se pairasse sobre o planisfério e escolhesse a dedo os lugares onde queria ser um dia e no dia a seguir. Falava com todas as suas cambiantes e delas bebia a originalidade diletante, o nunca cansaço de si mesmo, uma fonte que queria inesgotável. Sem remorso: o retardar do envelhecimento, sem necessidade de guias de autoajuda ou de gurus de autoconhecimento. 

De outras vezes, o aval de ser vários por dentro do mesmo corpo era uma tortura. A constelação de corredores interiores era mecenas de um labirinto que tomava proporções gigantescas. Ficava difícil o inventário interior, tantos os caminhos que desaguavam noutros caminhos que por sua vez iam ter à embocadura de caminhos de grandeza superior. Todo ele era um delta com ramificações infinitas. Não conseguia tomar conta de tantos ramais que davam conta do seu eu integral. Que se estilhaçava na riqueza dos eus variegados que tomavam proporção à medida que perdia o sentido do inventário. Tanta riqueza interior confluía num paradeiro ermo, uma identidade derramada nas suas múltiplas parcelas. O que podia ser a sua fortuna aprisionava-o à tortura de não se conseguir saber dentro de uns limites próprios. Era tanto de si, e em tantos formatos, que tinha para legar ao mundo, que se sentia órfão de si mesmo.

À interrogação sistemática, não sabia o que dizer. Os dias não eram iguais. Os estados de alma, também não. O que num dia era um clarão que ateava a lucidez, noutro dia era uma nuvem plúmbea que a açambarcava, deixando um ângulo morto a pairar sobre o adro onde se angariavam as respostas. Tinha o conforto da herança dos filósofos: antes cuidasse, com o zelo devido, das interrogações. Deixando de fora a imperatividade das respostas.  

18.7.23

Princípio geral da invisibilidade

Bryan Ferry, “Song to the Siren”, in https://www.youtube.com/watch?v=xLAsF8rMAJA

Na secretaria da escola, aguardo por vez. Os gémeos à minha frente tiram dúvidas burocráticas (começam o tirocínio para a grande nau a que vão ser aprisionados, não tarda muito). Duas adolescentes espevitadas saem do nada e chegam-se ao balcão de atendimento, pondo-se ao lado dos gémeos e à minha frente. São atendidas antes de mim.

Intuo uma leve impressão de invisibilidade e agrada-me. Fui invisível para as adolescentes que, a meio de um arsenal imparável de “tipo” entre cada duas palavras, e atrapalhadas com o idioma que mais se assemelha a um espinho cravado na vista, se fazem atender pela funcionária da secretaria, saltando por cima de mim. Também fui invisível para a funcionária da secretaria, que só podia ignorar a minha presença se fosse míope ou eu tão invisível que não deu pela minha presença.

Não quero considerar a hipótese de no lugar grassar a incivilidade geral. Não se dirá de uma escola – e menos ainda de uma escola que não quer os pergaminhos escoltados pela infâmia – ser um lugar de incivilidade, ou a escola estará a passar ao lado de uma das suas missões e não pode atestar os pergaminhos que a si mesma avoca. 

Respondidas as perguntas das adolescentes, desmobilizam às arrecuas, quase me atropelando com os quadris. Uma professora do lado de lá do guichet tem uma chamada de atenção preparada: “meninas, cuidado com o senhor aí atrás”. O “senhor” era eu, ainda não convencido de que o tempo (também) passa por mim, sempre a achar o tratamento (“senhor”) um corpo estranho; quando alguém diz “o senhor”, olho nas imediações para me certificar quem é o senhor que está a ser demandado. 

(Ele há tanto tempo que ninguém me chama “menino”...)

Alguém não precisava de óculos na escola, pela primeira vez em cinco minutos. Ruiu o manto de invisibilidade, para desfortuna minha (que adoro esse deus, a invisibilidade). Como às vezes não consigo reprimir uma dose de estupidez interna, fiz um reparo à professora: “não se incomode, as meninas passaram à minha frente porque não me viram, é compreensível que quase me tivessem atropelado às arrecuas”, entrando em auto-negação do estatuto de invisibilidade que tanto jeito dá. E as adolescentes, acabrunhadas, sem saberem onde se meter, esboçaram um tímido pedido de desculpa, instadas pelo ar de reprovação disfarçada da professora, sem meterem um “tipo” pelo meio do pedido. 

Afinal, não era má educação. Sosseguei-me: não era má educação, era apenas a minha propensão para a invisibilidade, esse capital que tanto estimo. E a escola continuava com os pergaminhos intactos, que não era cúmplice de gestos de incivilidade.

17.7.23

Breaking the balls of history

Mark Ronson, “I Sat By the Ocean”, in https://www.youtube.com/watch?v=dCbS2uJ4lEQ&list=RDdCbS2uJ4lEQ&start_radio=1

Os petizes que andam a aprender olham com desprezo para a História. Desengonçados no seu olhar ainda pueril, para eles a História é uma inutilidade. As coisas do passado pertencem ao passado, não se pode mexer nelas; isso já aprenderam – é pena que, mais à frente, sejam assaltados pelo inconveniente da nostalgia. E os episódios da História, presos num tempo de que não há resgate, não podem mexer com o presente.

Às vezes, os métodos radicais compensam. É preciso agitar consciências. Para as fazer medrar, nem que seja num assomo precoce de uma maturidade que, de outro modo, só chega tarde de mais. Compensa a infantilização que tem feito muito caminho na escala étaria. O seu efeito contrário tem de ser forçado, mesmo que seja por conta do risco das dores psicológicas causadas nos petizes. Não lhes faz mal começarem a crescer ainda a tempo. Têm de aprender a saber onde está alojado o magma que os determina.

Este é o método “breaking the balls of history”. Se estão entretidos com uma hibernação de que não dão conta, dá-se-lhes um banho gelado com o recurso à História. Sem esconder as imagens terríficas, a narração de episódios grotescos, as atrocidades, as imagens de mortos, todos estes blocos de gelo arrancados a um iceberg a serem metodicamente despejados em cima das cabeças ingénuas dos petizes, um dicionário de maldade gratuita. Para os petizes saberem que não seriam quem são se não houvesse alguém, muito tempo antes deles, que se sacrificou ou foi sacrificado. Para que saibam que a indiferença ao passado os esvazia. E que há mortes de outrora que não foram por acaso.

É a História a ser servida num pano puído, um palco por onde desfilam os horrores pedagógicos, a latrina da incivilização. É preciso apertar os tomates da História para a História apertar os tomates dos petizes. Até que uns e outros fiquem quites e os petizes deixem de desaparecer das instâncias da História, fugindo do futuro.

14.7.23

O compasso das divindades

dEUS, “How to Replace It”, in https://www.youtube.com/watch?v=nyyfPpm0tog

As divindades, reunidas em sindicato, passavam em revista as intendências que haveriam de ser registadas em ata. Era preciso atribuir comendas e ajuizar condenações. As divindades não recusavam o compasso moral que imputaram a si mesmas. Se fossem alheias a essa responsabilidade, deixariam de ser divindades.

(Havia filósofos que especulavam sobre quem decidira que seriam as divindades a chamar a si tamanha empreitada; podia ser que elas não fossem as entidades superiores, questionando a legitimidade para serem o compasso moral – podia ser que fosse um ato arbitrário das divindades, que se colocaram no vértice de onde apreciavam os demais, sem que outrem, acima de si, as tivesse empossado em tão grave sinecura. Esses filósofos, céticos por natureza, queriam saber quem decidira quem decidia: queriam negar provimento às divindades através da descoberta de outras divindades a elas superiores, mas não reconhecidas. Esses filósofos eram uns conspiradores. Acima de tudo, conspiravam contra o seu agnosticismo.)

Às divindades reconhecia-se um direito (divino, et pour cause) para aferir comportamentos, decisões, omissões, mentiras, nobres atos que dignificam quem os pratica, meras intenções, até os simples pensamentos que não transcendiam os limites do autor. Em sindicato reunidas, sindicavam os outros. Essa era a sua serventia.

(E os filósofos desconfiados, os filósofos sempre preparados para resgatar mais uma interrogação da fileira do apaziguamento mental, perguntaram: e quem criou as divindades? Emergiram de geração espontânea? O ceticismo, de braço dado com o racionalismo e o lugar centrípeto às provas providenciadas pela ciência, impedia-os de acreditarem na hipótese da geração espontânea. Não criam em milagres, que podiam ser consequência da intervenção divina; mas se o ato genesíaco das divindades fosse autenticado, tinha de ser validada a hipótese de haver divindades com o propósito único de gerarem as divindades estabelecidas. Haveria divindades originais e divindades por estas criadas. As primeiras esgotariam a sua intervenção no ato criador das divindades em funções. Os filósofos não estavam convencidos com a estrutura piramidal das divindades. O ato genesíaco ditaria a extinção das divindades originais. Não entendiam, os filósofos, tanto desprendimento.)

As resoluções das divindades não admitiam recurso. Parlamentavam no seio do sindicato, expeditas e solidamente ancoradas no saber, na experiência e nos pergaminhos de justeza que lhes eram reconhecidos. Os súbditos submetiam-se à sindicância divina com uma serenidade que não conseguiam sentir em mais nenhuma ocasião. Mesmo que desconfiassem que a sentença fosse devastadora: as divindades, pela imensa justeza com que se ungiam, não podiam ser contestadas. Não havia melhor ilustração da resignação, da pequenez da condição humana. E da sobranceria das divindades, que era confundida com o exercício da sua incontestável soberania.

(Os filósofos voltavam a interpelar os costumes: peritos na arte da inquirição – as perguntas não podem ser recusadas; e a única certeza que admitiam era a recusa de imperativos categóricos –, os filósofos contestavam os vereditos das divindades. Ao fazê-lo, contestavam as divindades. Pretendiam que os súbditos deixassem de ser considerados súbditos. Pretendiam que as pessoas, depois de despojadas da carga negativa da condição de súbdito, aprendessem a ter espírito crítico e não se intimidassem com os vereditos das divindades. Até que, um dia destes, demitissem as divindades e, ato contínuo, o sindicato das mesmas fosse extinto e o compasso a que elas deitavam mão fosse entregue nas mãos de uma fogueira heurística.)

13.7.23

Cair no goto é melhor do que cair no esgoto (cavalo de Troia)

Kiasmos, “Blurred”, in https://www.youtube.com/watch?v=HbsbieBog1c

Se o outro é o inferno, por que lhe damos tanta importância? (Outra vez.)

Com a modernidade invasiva, a interação com os outros não tem limites. A democratização do outro é o instrumento da legitimidade do eu: só alcanço a minha deferência se obtiver a aprovação dos outros; caso contrário, estarei condenado a ser uma ilha por dentro de mim, irrelevante por ausência do outro. É um selo que autentica a modernidade. Se não cairmos no goto do outro, estamos a caminho do nosso próprio, e irremediável, esgoto.

O outro é o nosso mantimento. Somos ninguém se não formos certificados pelo outro que nos é limítrofe. Mesmo que, sem confessarmos, julgamos o outro a emanação de um inferno; é um inferno necessário, constitui a caução para nos situarmos perante o outro. Sem esse situar não somos alguém. Somos a tal ilha encerrada dentro de si, fechada ao exterior, um autoexílio que pode não ser voluntário, as pedras pontiagudas da angústia servidas no vinho ácido da solidão.

A socialização pode ser um desmatar cerimonioso, o lacre obtido a custo, à mercê de manobras e indulgências (próprias ou em paga de favores concedidos a outros). Se os outros são o nosso inferno, a nossa validação que se exerce com a sua intermediação traz-nos um pedaço do inferno. De acordo com as convenções, é preferível sermos intimidados pelo inferno que é herança dos outros do que sermos constituídos arguidos no burel da misantropia. Dizem, para que aprendamos com a diligência esperada: ninguém é alguém sozinho. 

Se não capitulamos, damos a jogar esgrima e o adversário é a outra metade de nós. As meações ficam à espera de ver para onde cai o pêndulo, para saberem qual delas vinga. À inspeção dedicada do ativista meticuloso podem escapar os fumos tóxicos da alteridade. Caímos no goto e saímos a salvo. Não damos conta de termos inventariado o nosso próprio esgoto.

12.7.23

O pária sem remorso

Xinobi feat. Alem i-Adastra, “Başa Bela”, in https://www.youtube.com/watch?v=luCAh3v3c5k

O bando de pássaros esvoaça desorganizadamente organizado, com mudanças de direção de um lado para o outro, como se não houvesse trajetória definida a não ser a vontade de um deles, o que encima o bando, logo seguido pelos demais, formando um harmónio que se assemelha a uma coreografia distópica mas heurística. Frenéticos, os pássaros combinam os voos para parecerem um só corpo unido pela didascália incógnita que os conduz, desenhando no céu um testamento contagiante. 

Os pássaros são figuras mitológicas porque não têm passaporte. Nunca tiveram de parar nas fronteiras. Nunca tiveram de perecer em guerras por causa da origem, ou de guerras contratadas por outros semelhantes, nunca se filiaram em exércitos. Sempre andaram por onde quiseram, ou para onde os ventos os mandaram – sem que os ventos sejam a metáfora de um comando superior que confere uma ordem irrecusável. Os pássaros não têm, nunca tiveram, nacionalidade. São um exemplo para o pária sem remorso que observa, com a argúcia de um ornitólogo, com a perspicácia de um sociólogo, o bando de pássaros.

O pária sem remorso sentiu o apelo do mar e foi à praia. Sabia porquê. Os peixes são a analogia dos pássaros quando o habitat é nas profundezas do mar. Os peixes não pedem licença para passar entre as águas territoriais. Nunca foram chacinados por exércitos malquistos por terem uma nacionalidade que não têm. Os peixes, como os pássaros, falam todos os mesmo idioma. Não respondem a diferentes usos e costumes, não têm o lastro da cultura (e nisso ficam a perder para as pessoas). Mas não se insubordinam uns contra os outros. Os peixes também podem ser transportados para lugares distantes por força das correntes dos mares. Os mares não têm fronteiras porque, se tivessem, acabavam por arriar sob a força incontestável das correntes.

O pária queria ser apátrida e viver numa terra que fosse uma só. Sem fronteiras que travam as pessoas de serem umas com as outras. Sem desinteligências, pois a inteligência dos Homens devia superar o seu contrário – para o Homem não ficar refém de si mesmo, Homem-lobo, Homem tantas vezes destinado a ser o agente da sua própria autofagia.

Se fôssemos párias, seríamos como os pássaros e os peixes – eis a nostalgia impossível do pária sem remorso. Apostava que saberíamos, de mote próprio e sem embaraços, a definição de felicidade, sem máscaras e véus que a transfiguram. Saberíamos que ser apátrida não tem o cunho de um pária.

11.7.23

O futuro proibido

Queens of the Stone Age, “No One Knows” (live at Glastonbury 2023), in https://www.youtube.com/watch?v=tPv63byLoNk

Presos à anamnese do futuro, juravam a pés juntos que sabiam uns centímetros do futuro. Por mais que os desaconselhassem do futuro – por mais que sublinhassem, na ardósia que traziam nas mãos, que o futuro é a coisa mais desimportante de que podemos ser curadores. Dizia-se: o futuro é proibido, nunca chegar a existir; o seu prazo de validade esgota-se no agora que esvazia o futuro no presente.

Só os iludidos é que sussurravam as palavras que julgavam ecoar do futuro. No fundo, eram fingidores. Mergulhavam na sua amputação: meter um braço ou uma perna no futuro, era como de lá sair sem eles. Por mais que a advertência fosse pedagógica (o futuro, é o fruto proibido – e a vírgula não estava por acaso na oração), resistiam, debatiam-se com as forças de quem se esqueceu do presente. Era o fermento da esperança, o futuro de que não sabiam nada.

E, todavia, havia uma confraria do futuro. Gastavam todo o seu tempo à procura de oráculos convincentes, oráculos à prova de contestação. Arrumavam a contestação do presente com um bumerangue atirado à memória futura. Depois ficavam parados à espera da devolução, que é a física quântica do bumerangue. Esperavam pelas boas novas do futuro. De tão desanimados com o presente, eram viciados no futuro. No futuro proibido. Do futuro só se podiam esperar novidades que fossem boas. Mesmo que não fossem novidades e assim exaurissem a sua credencial de bondade. Eram os fautores de um totalitarismo intemporal.

Protestavam com veemência contra os que protestavam contra eles. Acusavam-nos de urdirem conspirações sucessivas contra o futuro. Acusavam esses déspotas de hipotecaram o futuro à conta da sua irascibilidade, à conta da sua incorrigível apreensão contra o futuro. Os procuradores do futuro tinham uma intendência: desmentir os apocalipses com marca registada do futuro, tirando do horizonte os vultos que o açambarcavam com o tempo presente. 

E por mais que os apóstatas tirassem crédito ao futuro – como se fossem especuladores que apostam contra a benevolência do futuro, mendigando-o como um fardo –, os que colhiam as flores frescas do pressentimento do futuro não se convenciam que o futuro era proibido. 

Essa era uma profecia que só os mortos podiam outorgar. 

10.7.23

A puta da resiliência

Ólafur Arnalds, “Hafursey” (Yfir), in https://www.youtube.com/watch?v=Fwgg8r8cznI

O muito cristão dar-o-outro-lado-da-face é muito cristão e embeleza a teoria como nenhum teórico aspira a conseguir. Resistam! E eles resistem, numa obediência que apouca a estética e a espinha dorsal dos obedientes. É a divisa que se ensina, o culto máximo da resignação, a declinação do eu a imperativos maiores, estando a legitimidade dos seus embaixadores ainda por apurar – pois é sempre tão fácil ditar para a ata os sacrifícios dos outros quando os peões dobram a cerviz e humildemente cumprem o preceituado, enquanto os almirantes observam desde o confortável miradouro. 

Somos a carne para canhão. Com o selo surdo da resiliência.

Agora adulteraram o dicionário e tudo aparece poluído pela resiliência. A culpa foi de um vírus que se contagiou em forma de pandemia – oficializada a teoria, para cumprimento acrítico da arraia-miúda. Não. A culpa foi de quem cunhou a resiliência, torcendo o seu significado. Não se aprende que nem todas as palavras podem ser traduzidas literalmente. A resiliência faz as vezes da resistência. Por culpa destes reinventores do dicionário, a resiliência está por todo o lado, na boca de muita gente, embebida na carne funda dos que têm de arranjar pretexto para justificar a vida penosa que levam e gostam de levar, dando legitimidade a quem assim ordena. 

A resiliência substituiu a pandemia anterior. Ou, formulando noutros termos, a resiliência é a herdeira legítima da pandemia e do vírus que a causou. Agora não temos o opróbrio das máscaras, que cindiam o rosto em dois e amputavam a identidade. Agora temos a resiliência que funciona como o anestésico que, de acordo com a teoria oficial, nos mobiliza para sermos persistentes, para atuarmos como tímidos agentes da mudança que as autoridades hesitam em organizar. Ou, segundo perspetiva convictamente niilista, a resiliência atira-nos para as funduras da hibernação cívica, condenados a seguir as ordens embrulhadas numa semântica reparada (e adulterada).

Se a resiliência tivesse vivido este modismo há oitenta anos, os historiadores tinham escrito livros sobre a resiliência antinazi. Os seus discípulos portugueses teriam teorizado sobre a resiliência antifascista. Os farmacêuticos estudariam as propriedades resilientes dos antibióticos contra as bactérias. E até uma banda de rock’n’roll se chamaria Resiliência.

E do autor, acima assinado, dir-se-ia, em jeito de História do futuro, que se insurgiu contra a adulteração da semântica e deu corpo à resistência à resiliência. Até que a resiliência, a puta da resiliência (sem ofensa para as meretrizes, que não são culpadas da invasão da resiliência), passasse a ombrear com os lugares-comuns que esperam saneamento.

7.7.23

Isto a propósito de uma formação sobre lavagem de mãos

PJ Harvey, “I Inside the Old I Dying”, in https://www.youtube.com/watch?v=MZDfM6bhKMc

Deviam inventar a licenciatura em Engenharia Social – ou até um mestrado. Para que o intenso paternalismo que sobre nós se abate não fique órfão de lastro teórico. Só poderiam ser engenheiros sociais os que tivessem estudado Engenharia Social.

Isto a propósito de um curso (de presença e avaliação obrigatórios) que ensinava a lavar as mãos. Não é só lavar as mãos, é lavar as mãos como deve ser. Como se fosse adquirido que não sabemos lavar as mãos, ou que a nossa dívida à higiene passa a conta do razoável. Mal não fica o cidadão se se submeter à aprendizagem. Se descobrir que não cumpria os preceitos aceitáveis da lavagem de mãos, os padrões de higiene por que passa a pautar-se são mais elevados, só fica a ganhar ao evitar a panóplia de bactérias e fungos que podem fermentar doenças mil. Se descobrir que já cumpria os cânones da higiene pessoal, fica devidamente certificado. Como diz o povo condescendente, mal não faz.

A menos que a porta fique entreaberta para futuras levas de formações que nos ensinem o que faltou à educação que os nossos pais nos deram. Pode começar por uma ação de como lavar os pés (para os pés não se sentirem discriminados em relação às mãos). E depois, uma outra, mais demorada, a ensinar como tomar um banho decente, onde serão combinadas duas facetas: a higiene pessoal e a proteção do ambiente, para que o cidadão saiba usar apenas a água estritamente necessária para sair do duche devidamente higienizado. E a seguir, uma ação de formação que ensina a lavar os dentes (para desgosto dos dentistas, que perderão clientela). E logo depois, uma formação sobre higiene íntima antes e depois do ato sexual. E por aí fora. Até sermos convocados para uma ação não facultativa sobre sexo, para, enfim, os diligentes paternalistas que nos tutelam saciarem (quem sabe?) os inconfessáveis desejos e se deitarem sabendo que indiretamente se deitaram nas nossas camas e entre os nossos corpos que se entrelaçam com a bênção de tais engenheiros sociais. A porta fica aberta para a futura higienização do cidadão, até que ele fique formatado como mandam os cânones da engenharia social. 

E, todavia, fui testemunha de um episódio que, dir-me-ão, me fará meter a viola no saco (para usar a expressão tão grata aos embaixadores dos lugares-comuns). Estava numa casa de banho pública e do lugar reservado à sanita saiu um rapazola que nem parou no apeadeiro da lavagem de mãos, saindo, ato contínuo, com as mãos no mesmo estado em que estavam antes de ter satisfeito a função que o levou à sanita. Sem lavar as mãos. Como era hora do almoço, perguntei-me se o rapazola saiu da casa de banho diretamente para o foyer da restauração.

Talvez fosse boa ideia fundar um mestrado em Engenharia Social e obrigar, desde os bancos da escola, os petizes a saberem como é a higiene pessoal e outras coisas que deviam perder o direito a pertencer à intimidade. Os paternalistas zelam muito pelo nosso bem-estar. Este zelo devia ser homenageado com um saber próprio nas universidades. Uma polícia dos costumes seria o complemento necessário. Como já estamos numa era de apertada videovigilância e quase tudo se pode saber sobre nós, era instalar câmaras nas casas de banho (já que a intimidade deixaria de ser intimidade) para multar os boçais que saem da casa de banho sem lavarem as mãos depois de defecarem.

6.7.23

Enclave

Radiohead, “Burn the Witch”, in https://www.youtube.com/watch?v=yI2oS2hoL0k

Há ilhas por fora, o cerco a admoestar o medo limítrofe. Ilhas que são domínios que soam a império, e os enclaves à mercê de boas vontades que não transigem com a sua vontade. As boas vontades da ilha limítrofe, que o cerca.

Há ilhas que se refugiam na ameaça da beligerância, como se o estado permanente de terror fosse a vassalagem de que precisam para o ato generoso a favor do enclave. Ilhas sem fortaleza a não ser a longanimidade de quem exerce a tutela, como se a tutela fosse um desprendimento que garante o direito de existência. Ilhas não fortuitas, e os enclaves que se metamorfoseiam ilhas viradas do avesso. Num débito perene de dependência.

As orquestras adestram-se no chão consecutivo, olhando de fora para o enclave. A música soletrada é o alfabeto que confere a existência do enclave. Ela vem de fora, é a chancela que autoriza o enclave. Os músicos sabem o que o enclave precisa. Sabem que o enclave não tem músicos residentes. Não é um sucedâneo de suserania. É o critério que valida a existência do enclave, sem que sobre ele pese o medo do arrependimento e a ilha limítrofe devore o enclave. 

O enclave precisa de oxigénio. O cerco da ilha limítrofe esbraceja os vultos que podem cercear o oxigénio vital. É responsabilidade da ilha limítrofe dissolver o medo que se possa apoderar do enclave. Devia escrever, em letras vívidas, que o enclave não corre o risco de ser assimilado contra a sua vontade, tornando-se parte integrante da ilha limítrofe que perderia a condição de ilha limítrofe. Os impérios são atavismos. Não rimam com o tempo hodierno. São atropelos à vontade dos territórios anexados.

Por mais enraizadas as garantias, o enclave não desaloja o estigma do medo. É um território cercado, sujeito à superioridade da ilha limítrofe, vive em constante sobressalto. Não se fia nas garantias de sobrevivência entoadas pela ilha limítrofe. Esse entoar é causa do medo permanente: de tanto proclamar que não serão trespassadas as fronteiras, o enclave atemoriza-se, pergunta, continuamente, porque a ilha limítrofe tem de garantir continuamente o que só precisa de garantir se tiver dúvidas que possa respeitar.

Alguém disse que um enclave é uma anomalia. E outros tiraram consequências: uma anomalia exige retificação. O medo do enclave nunca mais cessou de pesar sobre os seus piores pesadelos.

5.7.23

De todas as cores (short stories #428)

Daniel Catarino, “Teias de Aranha” (ao vivo), in https://www.youtube.com/watch?v=XmCqSrZukIs

          Dançam, as bandeiras hasteadas. Esgotam-se nelas os rostos que desembaraçam as fronteiras. As bandeiras são uma amostra do arco-íris. Mostram como é admirável a variedade. A metáfora da diferença, desde que haja vontade para renegar a indiferença do ensimesmar. As mãos estão tingidas com uma cor, mas não recusam mergulhar nas outras cores. Paletas de cores que desobrigam a monocromia entediante, mesquinha. As bandeiras por junto são a constelação de aprendizagens que retiram os meãos da exiguidade. As bandeiras por junto são o esperanto das cores, a escotilha que se desembaraça das águas profundas e traz os olhares ávidos para a superfície para apreciarem diferentes geografias. De todas as cores, um corpo faz o tirocínio cosmopolita. Embebe-se nas culturas diferentes. Entranha-se na arquitetura que é parte da idiossincrasia das cidades demandadas. Aprende a destronar as ameias que impedem os olhares longínquos, o esvoaçar das cores variegadas a constituir o lugar centrípeto de onde todos os lugares são protestados. De todas as cores, sem excluir nenhuma, até que a alma seja o espelho do arco-íris e nem as nuvens plúmbeas arrematem a claridade conquistada. São as cores todas que indeferem os vultos que se queriam perenes. Contagiam-se ao sangue, que passa a ser de um grupo diferente. Contagiam-se ao idioma, que se cinge à profusão de idiomas como amostra das pessoas que são tão diferentes na sua homogénea condição. As cores traduzem os estados de espírito que mudam, as palavras que são consoantes altivas e verbos descomprometidos, sempre à disposição de quem quiser que tenham serventia. E as próprias cores mudam de lugar, como se não quisessem ser reféns da rotina, como palimpsestos que alimentam as cores por dentro das cores, multiplicando as hipóteses. Tornando as vidas manadeiros copiosos. Não há biografias escassas. Desde que sejam de todas as cores.

4.7.23

Um analgésico do tamanho dos mares

Sigur Rós, “Blóðberg, in https://www.youtube.com/watch?v=ENZsxTiVQYo

Este é o atalho, a locomotiva dos audazes. Que admirável mundo – condescendem, extasiados, os que tomaram um analgésico do tamanho dos mares. Apregoam: não há lugares reféns que mereçam desterro e as lágrimas são o desembaraço da alma.

O musgo que se oferece antes da terra desguarnecida convida à extravagância dos diletantes. Muitos não provaram laranjas amargas. Alguns sabem como a acidez das laranjas é corrosiva, sabem como fabricam uma convulsão que vira tudo do avesso. Os colóquios onde as partes se entretêm são como jogos onde as palavras são atiradas contra as paredes do labirinto, até serem adulteradas. Dizem: as palavras precisam de reinventar os seus sentidos. E as pessoas aplaudem os jograis que esculpem o idioma sem critério, apenas porque esse é o feitiço que aprendem quando os gestos são comandados pelo degelo.

À espreita, os que protestam contra as atrocidades consecutivas. Do seu viés, apenas angústia, tragédia enciclopédica, os pés no limiar do apocalipse. Esfregam as desproezas do mundo contra os dinásticos da ordem que obedecem à ordem. Estão viciados em angústia, tragédia enciclopédica, no espectro do apocalipse. Desdenham os rostos translúcidos que transpiram a luz clara que usam nos dias quiméricos. Dos rostos que não se atêm ao modo crepuscular – e se o fizessem, cuidariam de provar que a luz baça que pressente a noite é outra quimera, as silhuetas desmatadas a subirem a palco para deixarem a sua impressão digital.

Para contrariar os mecenas da melancolia, recitam poemas com as vozes cheias de um luar gravitacional e tudo à volta deixa de ser ermo. Sobem às selas de onde ordenam cavalos imaginados. Meneiam os gestos como se estivessem na estepe a cuidar dos cavalos. Inventam o idioma. Inventam, se preciso for, as ordens mentais para aliviar o rosto do ar sorumbático que os melancólicos exibem. Se pudessem, decretavam cada dia um archote que é a dádiva de luz que repõe a frugalidade que contraria ambições sem escala.

Contestam-nos por recorrerem a analgésicos do tamanho dos mares e fingirem as dores irreparáveis. Não se importam. Se o fingimento for o ornato preciso para desautorizar a angústia e o clamor intencional do apocalipse, deitemo-nos ao fingimento. Esse é um opiáceo que não abriga a dependência. 

3.7.23

Naufrágio, um aviso sem receção

Tricky, “New Stole”, in https://www.youtube.com/watch?v=agP0xENtMQg

Têm-se em boa conta as epístolas que pressentem o porvir vitaminado. Ninguém gosta de dias sobressaltados, ou de quistos que impedem a lisura do dia. Ninguém gosta de atravessar as águas iracundas à mercê de uma tempestade. Os solavancos adiantam os enjoos encomendados às empreitadas vindouras. É preferível a bênção do mar que é um espelho de confiança.

Mas não sabemos da fibra do que espera. Uma didascália confunde-se com o oráculo de quem está seguro de si. Eram capazes de jurar que um mar meão não desafina. As certezas não podem ser travadas. 

Assim se congeminam as piores tempestades – as que ninguém adivinha. A confiança no devir está abotoada às algemas que se legitimam nas possibilidades. Dizem: “nada pode correr mal”, mas não sabem do paradeiro dos que cogitam a adulteração do que era esperado. O naufrágio não estava no programa. Se estivesse, deixava de estar: quem se aparta da lucidez sabendo que o espera um naufrágio? O naufrágio não faz parte das possibilidades. 

Só que o naufrágio não tem aviso de receção. Pode acontecer quando ainda ninguém deu conta que o navio já foi invadido e o mar pirata o condena-o ao naufrágio insalubre. O material não espera pela reparação. Depois já só conta a arqueologia. O sal entranhado na ferrugem, dando-lhe fermento. Um cemitério debaixo de água, um palco fantasmagórico, sem som, sem cor, sem palavras sublinhadas, nunca mais com nuvens para contemplar.

A destêmpera é corrosiva: a lucidez é assaltada e os dicionários ficam por conta do silêncio. A fita métrica está perdida. Os rostos, esquecidos. O olhar, refém de uma névoa que o embacia, apenas umas sombras que se combinam com as memórias que reclamam um lugar (antes que seja tarde). No lugar do naufrágio, a ferrugem é o hino hasteado. Não esperem que a lucidez que contraria o devir esteja de atalaia. O naufrágio não tem aviso prévio.