Se o outro é o inferno, por que lhe damos tanta importância? (Outra vez.)
Com a modernidade invasiva, a interação com os outros não tem limites. A democratização do outro é o instrumento da legitimidade do eu: só alcanço a minha deferência se obtiver a aprovação dos outros; caso contrário, estarei condenado a ser uma ilha por dentro de mim, irrelevante por ausência do outro. É um selo que autentica a modernidade. Se não cairmos no goto do outro, estamos a caminho do nosso próprio, e irremediável, esgoto.
O outro é o nosso mantimento. Somos ninguém se não formos certificados pelo outro que nos é limítrofe. Mesmo que, sem confessarmos, julgamos o outro a emanação de um inferno; é um inferno necessário, constitui a caução para nos situarmos perante o outro. Sem esse situar não somos alguém. Somos a tal ilha encerrada dentro de si, fechada ao exterior, um autoexílio que pode não ser voluntário, as pedras pontiagudas da angústia servidas no vinho ácido da solidão.
A socialização pode ser um desmatar cerimonioso, o lacre obtido a custo, à mercê de manobras e indulgências (próprias ou em paga de favores concedidos a outros). Se os outros são o nosso inferno, a nossa validação que se exerce com a sua intermediação traz-nos um pedaço do inferno. De acordo com as convenções, é preferível sermos intimidados pelo inferno que é herança dos outros do que sermos constituídos arguidos no burel da misantropia. Dizem, para que aprendamos com a diligência esperada: ninguém é alguém sozinho.
Se não capitulamos, damos a jogar esgrima e o adversário é a outra metade de nós. As meações ficam à espera de ver para onde cai o pêndulo, para saberem qual delas vinga. À inspeção dedicada do ativista meticuloso podem escapar os fumos tóxicos da alteridade. Caímos no goto e saímos a salvo. Não damos conta de termos inventariado o nosso próprio esgoto.
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