10.7.23

A puta da resiliência

Ólafur Arnalds, “Hafursey” (Yfir), in https://www.youtube.com/watch?v=Fwgg8r8cznI

O muito cristão dar-o-outro-lado-da-face é muito cristão e embeleza a teoria como nenhum teórico aspira a conseguir. Resistam! E eles resistem, numa obediência que apouca a estética e a espinha dorsal dos obedientes. É a divisa que se ensina, o culto máximo da resignação, a declinação do eu a imperativos maiores, estando a legitimidade dos seus embaixadores ainda por apurar – pois é sempre tão fácil ditar para a ata os sacrifícios dos outros quando os peões dobram a cerviz e humildemente cumprem o preceituado, enquanto os almirantes observam desde o confortável miradouro. 

Somos a carne para canhão. Com o selo surdo da resiliência.

Agora adulteraram o dicionário e tudo aparece poluído pela resiliência. A culpa foi de um vírus que se contagiou em forma de pandemia – oficializada a teoria, para cumprimento acrítico da arraia-miúda. Não. A culpa foi de quem cunhou a resiliência, torcendo o seu significado. Não se aprende que nem todas as palavras podem ser traduzidas literalmente. A resiliência faz as vezes da resistência. Por culpa destes reinventores do dicionário, a resiliência está por todo o lado, na boca de muita gente, embebida na carne funda dos que têm de arranjar pretexto para justificar a vida penosa que levam e gostam de levar, dando legitimidade a quem assim ordena. 

A resiliência substituiu a pandemia anterior. Ou, formulando noutros termos, a resiliência é a herdeira legítima da pandemia e do vírus que a causou. Agora não temos o opróbrio das máscaras, que cindiam o rosto em dois e amputavam a identidade. Agora temos a resiliência que funciona como o anestésico que, de acordo com a teoria oficial, nos mobiliza para sermos persistentes, para atuarmos como tímidos agentes da mudança que as autoridades hesitam em organizar. Ou, segundo perspetiva convictamente niilista, a resiliência atira-nos para as funduras da hibernação cívica, condenados a seguir as ordens embrulhadas numa semântica reparada (e adulterada).

Se a resiliência tivesse vivido este modismo há oitenta anos, os historiadores tinham escrito livros sobre a resiliência antinazi. Os seus discípulos portugueses teriam teorizado sobre a resiliência antifascista. Os farmacêuticos estudariam as propriedades resilientes dos antibióticos contra as bactérias. E até uma banda de rock’n’roll se chamaria Resiliência.

E do autor, acima assinado, dir-se-ia, em jeito de História do futuro, que se insurgiu contra a adulteração da semântica e deu corpo à resistência à resiliência. Até que a resiliência, a puta da resiliência (sem ofensa para as meretrizes, que não são culpadas da invasão da resiliência), passasse a ombrear com os lugares-comuns que esperam saneamento.

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