28.7.23

A salvação de Sócrates

Massive Attack ft. Sinéad O’Connor, “Special Cases”, in https://www.youtube.com/watch?v=OQ31yNp6Nao

As linhas no papel estão desfocadas. O nevoeiro pousara na folha. Embaciado, o papel contamina o olhar, também embaciado. Nestas alturas – ponderava com o método possível – as ideias são órfãs. Uma nebulosa açaima a lucidez, como se fosse preciso ordenar as palavras que desalfandegam a lucidez. Não há modos diferentes de o dizer. A menos que pela janela espreitem espíritos ávidos com o seu olhar imparcial e sussurrem a água pura tirada à fonte.

Se a folha de papel está corrompida, o que se dirá das palavras que vierem a ser vertidas na folha? Os consumidores de lugares-comuns, os profetas da obviedade, respondem sem hesitações: as palavras são corrompidas. Estão errados. Das arcadas do tempo, uns vultos perenes insistem na perenidade das suas lições. Insistem: as pessoas devem olhar sob o véu, é lá que se sublevam os amotinados que não aceitam a leviandade do óbvio. Segundo esses vultos intemporais, as folhas podem ter sido corrompidas, mas ainda é possível escrever as palavras sem ser num plano esventrado.

Mas as pessoas não acreditam. Bolçam os pergaminhos (o que julgam ser pergaminhos): a causa e o efeito não podem ser obliterados pela dicção dos sábios. Questionam os sábios: o que sabem eles? O que podem dizer em sua defesa, se estão mortos? Os seus discípulos falam por eles? Fazem-no na módica condição de intérpretes. O fio condutor esgaçado não é o plano convincente para guardar em memória as ideias; até porque são abjuradas por serem arcanas, como se o caldo em que medra a História do pensamento estivesse prescrito pelo anátema do futuro.

Alguém advertiu que é preciso congeminar a salvação de Sócrates. Aceitam-se a concurso as duas leituras da proclamação. A salvação de Sócrates, para que ele não se extinga à mercê da estultícia dos algozes do futuro que, à medida que o futuro se asfalta, vão encerrando o passado na desmemória. Ou a salvação de Sócrates que nos inventaria como seus sujeitos, para que não nos sujeitemos à aleatória vontade dos apóstolos malsãos dos lugares-comuns.

Ou então, juntamos as duas possibilidades. E salvando Sócrates dos algozes, deixamos que Sócrates venha em nosso socorro. Para que as linhas irregulares não sejam o veneno das palavras que se deitam na folha de papel. 

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