18.7.23

Princípio geral da invisibilidade

Bryan Ferry, “Song to the Siren”, in https://www.youtube.com/watch?v=xLAsF8rMAJA

Na secretaria da escola, aguardo por vez. Os gémeos à minha frente tiram dúvidas burocráticas (começam o tirocínio para a grande nau a que vão ser aprisionados, não tarda muito). Duas adolescentes espevitadas saem do nada e chegam-se ao balcão de atendimento, pondo-se ao lado dos gémeos e à minha frente. São atendidas antes de mim.

Intuo uma leve impressão de invisibilidade e agrada-me. Fui invisível para as adolescentes que, a meio de um arsenal imparável de “tipo” entre cada duas palavras, e atrapalhadas com o idioma que mais se assemelha a um espinho cravado na vista, se fazem atender pela funcionária da secretaria, saltando por cima de mim. Também fui invisível para a funcionária da secretaria, que só podia ignorar a minha presença se fosse míope ou eu tão invisível que não deu pela minha presença.

Não quero considerar a hipótese de no lugar grassar a incivilidade geral. Não se dirá de uma escola – e menos ainda de uma escola que não quer os pergaminhos escoltados pela infâmia – ser um lugar de incivilidade, ou a escola estará a passar ao lado de uma das suas missões e não pode atestar os pergaminhos que a si mesma avoca. 

Respondidas as perguntas das adolescentes, desmobilizam às arrecuas, quase me atropelando com os quadris. Uma professora do lado de lá do guichet tem uma chamada de atenção preparada: “meninas, cuidado com o senhor aí atrás”. O “senhor” era eu, ainda não convencido de que o tempo (também) passa por mim, sempre a achar o tratamento (“senhor”) um corpo estranho; quando alguém diz “o senhor”, olho nas imediações para me certificar quem é o senhor que está a ser demandado. 

(Ele há tanto tempo que ninguém me chama “menino”...)

Alguém não precisava de óculos na escola, pela primeira vez em cinco minutos. Ruiu o manto de invisibilidade, para desfortuna minha (que adoro esse deus, a invisibilidade). Como às vezes não consigo reprimir uma dose de estupidez interna, fiz um reparo à professora: “não se incomode, as meninas passaram à minha frente porque não me viram, é compreensível que quase me tivessem atropelado às arrecuas”, entrando em auto-negação do estatuto de invisibilidade que tanto jeito dá. E as adolescentes, acabrunhadas, sem saberem onde se meter, esboçaram um tímido pedido de desculpa, instadas pelo ar de reprovação disfarçada da professora, sem meterem um “tipo” pelo meio do pedido. 

Afinal, não era má educação. Sosseguei-me: não era má educação, era apenas a minha propensão para a invisibilidade, esse capital que tanto estimo. E a escola continuava com os pergaminhos intactos, que não era cúmplice de gestos de incivilidade.

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