12.7.23

O pária sem remorso

Xinobi feat. Alem i-Adastra, “Başa Bela”, in https://www.youtube.com/watch?v=luCAh3v3c5k

O bando de pássaros esvoaça desorganizadamente organizado, com mudanças de direção de um lado para o outro, como se não houvesse trajetória definida a não ser a vontade de um deles, o que encima o bando, logo seguido pelos demais, formando um harmónio que se assemelha a uma coreografia distópica mas heurística. Frenéticos, os pássaros combinam os voos para parecerem um só corpo unido pela didascália incógnita que os conduz, desenhando no céu um testamento contagiante. 

Os pássaros são figuras mitológicas porque não têm passaporte. Nunca tiveram de parar nas fronteiras. Nunca tiveram de perecer em guerras por causa da origem, ou de guerras contratadas por outros semelhantes, nunca se filiaram em exércitos. Sempre andaram por onde quiseram, ou para onde os ventos os mandaram – sem que os ventos sejam a metáfora de um comando superior que confere uma ordem irrecusável. Os pássaros não têm, nunca tiveram, nacionalidade. São um exemplo para o pária sem remorso que observa, com a argúcia de um ornitólogo, com a perspicácia de um sociólogo, o bando de pássaros.

O pária sem remorso sentiu o apelo do mar e foi à praia. Sabia porquê. Os peixes são a analogia dos pássaros quando o habitat é nas profundezas do mar. Os peixes não pedem licença para passar entre as águas territoriais. Nunca foram chacinados por exércitos malquistos por terem uma nacionalidade que não têm. Os peixes, como os pássaros, falam todos os mesmo idioma. Não respondem a diferentes usos e costumes, não têm o lastro da cultura (e nisso ficam a perder para as pessoas). Mas não se insubordinam uns contra os outros. Os peixes também podem ser transportados para lugares distantes por força das correntes dos mares. Os mares não têm fronteiras porque, se tivessem, acabavam por arriar sob a força incontestável das correntes.

O pária queria ser apátrida e viver numa terra que fosse uma só. Sem fronteiras que travam as pessoas de serem umas com as outras. Sem desinteligências, pois a inteligência dos Homens devia superar o seu contrário – para o Homem não ficar refém de si mesmo, Homem-lobo, Homem tantas vezes destinado a ser o agente da sua própria autofagia.

Se fôssemos párias, seríamos como os pássaros e os peixes – eis a nostalgia impossível do pária sem remorso. Apostava que saberíamos, de mote próprio e sem embaraços, a definição de felicidade, sem máscaras e véus que a transfiguram. Saberíamos que ser apátrida não tem o cunho de um pária.

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