A imensidão de uma alvorada: o gelo desfeito na exaustão da noite cede passagem à claridade que inaugura o dia. Ainda o silêncio. Ainda as ruas quase despovoadas. Um lampejo de ruralidade na cidade (não fosse o entrecruzar de cimento desmenti-lo). O dia apetece mais quando ainda está crepuscular, ainda costurando a escuridão e a luz clara que será a sua ideia. A falésia não se arremata no pudor das almas extraídas dos sonhos. O chão não é um fingimento. As árvores são de carne e osso. As pessoas que começam a despontar, quase todas estremunhadas, protestam contra a finitude do sono. Esboçam palavras que se arrastam na indolência. Não sorriem. Não pedem “por favor” o pequeno-almoço, o café, o jornal para poderem atestar os vários apeadeiros e personagens que desaconselham o mundo. Qualquer dia é um dia na antítese de um dia qualquer. É não trazer arqueado um peso intrigante que apavora o dia restante. É não dar importância à angústia da demora ou ao assalto intransigente de um atraso. É não haver calendário, mapa, intendência, razão que se digladie com a desrazão, um protesto contra as injustiças de variada espécie, o abismo da desigualdade. Um qualquer dia é o avesso de um dia qualquer. Não lhe tira as medidas, porque é indiferente. Se houvesse um miradouro para entretecer o dia que se candidata a ser um qualquer dia, os oráculos seriam deixados aos profetas e à sua ira, deixados na infâmia de um nada. O rosto de um dia raiado não precisa de maquilhagem. Não precisa de ser desfeiteado pelo disfarce. Atira-se de cabeça para a piscina onde o espera o tempo restante. Corrige-lhe as arestas, tanta a lucidez que se lhe abraça. E depois, para memória futura, deixa um cortejo de versos desimpedidos da fornalha onde se incensam os mitos exauridos.
20.7.23
Qualquer dia (short stories #429)
The Go-Betweens, “Bachelor Kisses”, in https://www.youtube.com/watch?v=lIn3ZZzJACg
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