De um lugar que não havia memória, levantavam-se os corpos ausentes para o exílio intencional. Os muros do futuro jogavam-se contra as centelhas disfarçadas. O memorial, uma forma de estuque que fazia de conta que era parede, definia as baias. Era preciso marcar os limites. Sem fronteiras (assim se ensinava), não éramos ninguém.
Mas havia dissidentes. Gente descontente, desconfiada dos grandes arquitetos que tinham em mãos a empreitada de trazer os gentios pela trela. Gente que pensava pela sua cabeça. Sem fazer do pensamento dissidente um território desconhecido que hipotecava os alicerces. Apenas queriam encontrar um cais a preceito sem terem de ser rebanho. Costuravam um terreno que não obedecia a mapas e a ordenanças. Chamavam-lhes párias.
O que era mais importante: aquilo que eram aos olhos dos outros, assim treslidos, ou o que sabiam ser? Escolhiam a segunda hipótese. Eram escoltados pelo lastro a que pediam proteção. Podiam ser apóstatas, com certeza, e não se esperasse que fossem convidados para sinecuras ou embaixadas de variegada linhagem. Recusariam o convite, alguma vez existisse.
(A menos que se traíssem, como estava documentado nos registos, deixando em aberto a hipótese de serem apenas apóstatas por fingimento, capitulando aos privilégios da sinecura. Esses nunca mais podiam pertencer a qualquer dissidência. Reputados traidores, uns cedendo ao aceno das vantagens imateriais da ostentação do poder, outros deixando a nu a sua essência.)
Sobre eles repousava a autoridade dos livros arregimentados para cimentar a divergência. Essa era a sua escolta máxima. Não perdiam pitada do tempo. Não perdiam a oportunidade de acarear as ideias que se opunham. Participavam da miríade de olhares que se entreabrem como grelha de leitura. Negavam validade a qualquer dogma que se inscrevesse na linha de montagem. Esses eram os primeiros a ser recusados. Com a escolta da pluralidade e o beneplácito da visão panorâmica que deitava mundo sobre eles. Desta escolta à prova de preço, instruíam o dedilhar meticuloso das páginas do mundo. E saboreavam, com incomparável deleite, desde o miradouro panorâmico, tanta paisagem limítrofe a perder de vista, sem horizonte por limite.
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