Não amolecia. Não transigia aos ecos que evocavam sombras do futuro. As metades apartadas diziam que os hemisférios eram diferentes, como se outro fosse o património genético que lhes pertencia. As veias eram únicas, o sangue diferente. Sentia que não era apenas uma pessoa. Antes fossem várias as personalidades que o habitavam para não ser refém da pequenez.
Talvez pudesse ser apenas a insurgência contra a habilitação da rotina. Não queria ser a origem da sua própria rotina. Jogava com todas as forças contra os impedimentos da alteridade, mas não transgredia as luzes que permaneciam no fio do horizonte, evocativas das diferentes luas. Sabia que no sangue residia uma variedade de projeções, à medida das circunstâncias, à mercê dos corredores insondáveis que amadureciam a vontade. Não queria que um dia fosse igual ao seu consecutivo.
Às vezes, interrogava-se sobre o significado da multiplicidade de personalidades. Ora a considerava uma dádiva, ora pressentia tratar-se de uma tortura.
Era dádiva porque o critério emprestava ângulos vários, uma roda-viva de tempos e modos, como se pairasse sobre o planisfério e escolhesse a dedo os lugares onde queria ser um dia e no dia a seguir. Falava com todas as suas cambiantes e delas bebia a originalidade diletante, o nunca cansaço de si mesmo, uma fonte que queria inesgotável. Sem remorso: o retardar do envelhecimento, sem necessidade de guias de autoajuda ou de gurus de autoconhecimento.
De outras vezes, o aval de ser vários por dentro do mesmo corpo era uma tortura. A constelação de corredores interiores era mecenas de um labirinto que tomava proporções gigantescas. Ficava difícil o inventário interior, tantos os caminhos que desaguavam noutros caminhos que por sua vez iam ter à embocadura de caminhos de grandeza superior. Todo ele era um delta com ramificações infinitas. Não conseguia tomar conta de tantos ramais que davam conta do seu eu integral. Que se estilhaçava na riqueza dos eus variegados que tomavam proporção à medida que perdia o sentido do inventário. Tanta riqueza interior confluía num paradeiro ermo, uma identidade derramada nas suas múltiplas parcelas. O que podia ser a sua fortuna aprisionava-o à tortura de não se conseguir saber dentro de uns limites próprios. Era tanto de si, e em tantos formatos, que tinha para legar ao mundo, que se sentia órfão de si mesmo.
À interrogação sistemática, não sabia o que dizer. Os dias não eram iguais. Os estados de alma, também não. O que num dia era um clarão que ateava a lucidez, noutro dia era uma nuvem plúmbea que a açambarcava, deixando um ângulo morto a pairar sobre o adro onde se angariavam as respostas. Tinha o conforto da herança dos filósofos: antes cuidasse, com o zelo devido, das interrogações. Deixando de fora a imperatividade das respostas.
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