14.7.23

O compasso das divindades

dEUS, “How to Replace It”, in https://www.youtube.com/watch?v=nyyfPpm0tog

As divindades, reunidas em sindicato, passavam em revista as intendências que haveriam de ser registadas em ata. Era preciso atribuir comendas e ajuizar condenações. As divindades não recusavam o compasso moral que imputaram a si mesmas. Se fossem alheias a essa responsabilidade, deixariam de ser divindades.

(Havia filósofos que especulavam sobre quem decidira que seriam as divindades a chamar a si tamanha empreitada; podia ser que elas não fossem as entidades superiores, questionando a legitimidade para serem o compasso moral – podia ser que fosse um ato arbitrário das divindades, que se colocaram no vértice de onde apreciavam os demais, sem que outrem, acima de si, as tivesse empossado em tão grave sinecura. Esses filósofos, céticos por natureza, queriam saber quem decidira quem decidia: queriam negar provimento às divindades através da descoberta de outras divindades a elas superiores, mas não reconhecidas. Esses filósofos eram uns conspiradores. Acima de tudo, conspiravam contra o seu agnosticismo.)

Às divindades reconhecia-se um direito (divino, et pour cause) para aferir comportamentos, decisões, omissões, mentiras, nobres atos que dignificam quem os pratica, meras intenções, até os simples pensamentos que não transcendiam os limites do autor. Em sindicato reunidas, sindicavam os outros. Essa era a sua serventia.

(E os filósofos desconfiados, os filósofos sempre preparados para resgatar mais uma interrogação da fileira do apaziguamento mental, perguntaram: e quem criou as divindades? Emergiram de geração espontânea? O ceticismo, de braço dado com o racionalismo e o lugar centrípeto às provas providenciadas pela ciência, impedia-os de acreditarem na hipótese da geração espontânea. Não criam em milagres, que podiam ser consequência da intervenção divina; mas se o ato genesíaco das divindades fosse autenticado, tinha de ser validada a hipótese de haver divindades com o propósito único de gerarem as divindades estabelecidas. Haveria divindades originais e divindades por estas criadas. As primeiras esgotariam a sua intervenção no ato criador das divindades em funções. Os filósofos não estavam convencidos com a estrutura piramidal das divindades. O ato genesíaco ditaria a extinção das divindades originais. Não entendiam, os filósofos, tanto desprendimento.)

As resoluções das divindades não admitiam recurso. Parlamentavam no seio do sindicato, expeditas e solidamente ancoradas no saber, na experiência e nos pergaminhos de justeza que lhes eram reconhecidos. Os súbditos submetiam-se à sindicância divina com uma serenidade que não conseguiam sentir em mais nenhuma ocasião. Mesmo que desconfiassem que a sentença fosse devastadora: as divindades, pela imensa justeza com que se ungiam, não podiam ser contestadas. Não havia melhor ilustração da resignação, da pequenez da condição humana. E da sobranceria das divindades, que era confundida com o exercício da sua incontestável soberania.

(Os filósofos voltavam a interpelar os costumes: peritos na arte da inquirição – as perguntas não podem ser recusadas; e a única certeza que admitiam era a recusa de imperativos categóricos –, os filósofos contestavam os vereditos das divindades. Ao fazê-lo, contestavam as divindades. Pretendiam que os súbditos deixassem de ser considerados súbditos. Pretendiam que as pessoas, depois de despojadas da carga negativa da condição de súbdito, aprendessem a ter espírito crítico e não se intimidassem com os vereditos das divindades. Até que, um dia destes, demitissem as divindades e, ato contínuo, o sindicato das mesmas fosse extinto e o compasso a que elas deitavam mão fosse entregue nas mãos de uma fogueira heurística.)

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