Broto do crepúsculo escondido, a fonte que não se exaure nem que seja acossada por intempéries ávidas. A mesma cor desmente o sangue que se encontra no apeadeiro da lonjura. Dizem que só temos uma pele. E eu desminto: por dentro de mim, encontro uma segunda pele. A pele heurística, a pele abrigo dos contratempos que não trazem aviso, a colossal pele refúgio.
A segunda pele não se incomoda com a pele que a antecede. Sabe que essa é a pele que se oferece aos agravos, a pele estética que desenha o corpo à mostra, a pele que mostra uma identidade. Sob essa pele, em forma de reserva inesgotável, a pele invisível e, todavia, coriácea. A pele impermeável às tempestades que congraçam o modo do tempo. Como se fosse a rocha impenetrável que escuda um desfiladeiro, a rocha que se despenha pelo alcantilado terreno e o ampara: assim é a segunda pele, um salvo-conduto que não pede permissão.
A segunda pele nunca dorme, é constante a sua atalaia. Se os fantasmas investirem, a segunda pele não é tomada em desprevenção. Ativa as defesas que anulam a investida dos fantasmas. É da sua natureza ser à prova de sono, um farol perene que nunca se extingue nem perante as piores tempestades ou as privações que ameaçam cercear a existência. A segunda pele imagina mapas diferentes, marés que não adulteram os verbos armilares, inacessíveis montanhas cobertas de neve (epítome da serenidade intemporal), miradouros povoados por almas sedentas de conhecimento, estrofes que compõem o paradeiro por determinar.
Dizem que só temos uma pele (insistem). E eu desminto (insisto): não precisamos de escavar a pele à mostra para sabermos da segunda pele. Os arrepios não vêm da primeira pele, são incendiados pela segunda, a mais sensível, pele. As sensações que escapam à sindicância das palavras procedem da segunda pele. O desejo do futuro é ateado pela segunda pele. Se pudesse ser tatuada, a segunda pele continuava indelével, a tinta dura da tatuagem incapaz de se deitar nos seus poros.
É desta gramática que a segunda pele se anima. Para povoar as pessoas e delas ser testa-de-ferro, a discreta conceção retratada num estuário sem moldura. Porque a segunda pele é à prova de fingimento.
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