31.10.23

Tabela periódica

Einstürzende Neubauten, “Redukt” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=jjdykygf-TE

Era capaz de jurar, sobre o sortilégio do amanhecer, que as palavras se embotavam na soldadura e abonava como se tivessem dito que era preciso torná-las solenes. Se fosse pelos suores que dedilhavam os ossos, as enseadas saíam do esconderijo para darem nomes aos mares despojados. Sobravam os fiordes imaginados que arrefeciam a boca.

Num tirocínio constante, as mãos davam-se à terra. Nesse embeber estava o diadema que convocava a fusão com a natureza. Uma força coesa emergia das entranhas da terra, parecia que as águas vulcânicas se iam derramar sobre o céu em aberto. Era o efeito das mãos telúricas a remexerem na terra: agravavam o seu prejuízo antes de bolçarem um pedaço das entranhas, sem vergonha de virem nuas à tona. 

Não se tratava de esgrima, que a peleja (assim fazem constar os compêndios) é desigual. As manhãs não coligiam os pesadelos desandados, esses ficavam por conta das assombrações que colonizaram os sonos. Mas as mãos não capitulavam, sabiam da sua imensa fragilidade. Por isso embebiam-se na terra fresca para saberem suas as madrugais feições. Queriam comungar do magma estreito que tira a febre da terra. Queriam voltar a ser humildes. 

Depois da safra, a sua diligência amanhecia no horizonte que se levantava sob a égide do sol. As mãos apareciam nuas, sujas de tanta pureza dos nutrientes costurados pela submersão na terra funda. As mãos legavam a tabela periódica que coalescia às dores do futuro. Agora, as árvores já podiam ser. Os bichos não pediam extinção contra as injúrias dos Homens. O arrebatamento ficava por conta dos olhos cautelares, de atalaia às dores dos elementos, seus procuradores insaciáveis. 

Ficava dito: por tanto que fique emoldurado sobre as ofensas à natureza, ainda é uma luta desigual. Não queiram ver a natureza iracunda a transbordar os seus efeitos para os limites do Homem.

30.10.23

Slot machine

The Limiñanas, “Au debut c’était le debut” (live @ Trianon), in https://www.youtube.com/watch?v=OoIM7EC_mXM

“Não me venham com conclusões, que a única conclusão é a morte.” Fernando Pessoa

Atiram os escombros dos outros que invadem o olhar, o pensamento assim agredido. As vidas sem nome não têm respeito. Mercadejam-se contra desprincípios esgrimidos em nome de bandeiras e hinos, em nome de ardis, num xadrez mesquinho. Entre o respeitável simulacro dos mandantes e os escombros, um interminável cortejo de mortos. Os mortos que nunca contaram para nada, mesmo quando eram vivos.

É como se todos fossem centrifugados dentro de uma slot machine ludicamente jogada por farsantes que se movem nos corredores da adrenalina. As vidas atiradas contra as muralhas, arremessadas contra balas e morteiros, deixadas à mercê de algozes desapiedados. Vidas sem nomes, nomes atirados ao acaso numa roleta russa que as desfigura. Não há inocentes – a não ser as vidas que se albergam, desprotegidas, na mealha da slot machine e da vontade conciliadora dos seus mecenas. O sangue que as obrigam a derramar é um episódio da tinta convocada para verter os capítulos hediondos da humanidade. Muitas vezes, chama-lhe História. Melhor se diria, em conclusão mundana: desumanidade, História irrisória, ultrajante.

Os escombros também podem ser a peugada de uma exibição telúrica da natureza. Também arrasta vítimas, também inocentes. Mas não podemos invetivar o algoz desses escombros, a natureza que joga os seus sortilégios, ou deus, para os que assim quiserem arranjar expiação. Aos escombros ditados pela demência humana não há indiferença que possa dormir sem a companhia de pesadelos.

Devia-se congeminar um ato secreto de destruição das fábricas de slot machines. Só que as fábricas de beligerâncias nunca dormem, revezam-se por turnos para estarem de atalaia. Precisam de atear inimigos perenes. Se não for assim, um dia podem ser apanhados em falso e descobrem um inimigo não inventariado que veio atear as veias do terror e o sangue pútrido. Tornam-se eruditas na invenção de hostis, mesmo que não tenham rosto. Não podemos ser atraiçoados pela derisão da lucidez: antes que sejamos apeados pela ilógica de desumanidade, golpeamos as muralhas onde se escondem os estiradores que desenham a máquina deletéria de destruição. O Homem é o seu próprio lobo.

As slot machines despontam depois de dissipado o véu que fingia a lucidez. Um mapa de destruição, edificados desfeitos em escombros que são a natureza morta que dispensa metáforas. O cimento volta a ser pó. As bestas, nunca deixaram de ser animais desanimados que se embriagam com a coreografia da morte. E nós, voltamos a ser passado, dele reféns. 

27.10.23

Comoção fora de horas

The Breeders, “Go Man Go”, in https://www.youtube.com/watch?v=zcYCyzvNY1M

Parte de mim soube ser a metade oculta que se exila da sindicância. O anonimato foi fonte, fugindo das luzes extravagantes que se insinuam, sedutoras. 

Diriam: paguei com o preço da desoportunidade. Tivesse continuado empenhado num investimento inaugural e o destino teria sido um lugar longínquo, possivelmente elevado a outro Olimpo. A dedução não passa disso: um pressentimento que não pode saber das marés que teriam protestado o seu direito se outras tivessem sido as avenidas percorridas. Não quero ser mecenas de arrependimentos. 

Os ossos só fogem do acosso da matéria desnatural, desviando-se das balas extravagantes. A visibilidade é um ónus que depois é difícil de anular. Os rostos indiferentes, que permanecem incógnitos no meio de uma rua sequer deserta, angariam a seu favor os palácios da felicidade. Uma alma repleta não procura reconhecimento exterior. Valida-se a si mesma, despretensiosamente. Não demanda as luzes feéricas que conferem a maquilhagem, o aval de um disfarce. Prefiro ser eu a ser um meu disfarce. 

(Ainda que seja uma maratona encontrar as fronteiras que contêm o eu.)

Os augúrios não têm lugar nesta peregrinação às arcadas escondidas. Cobram-se faturas de tempos idos com a benevolência que o futuro carrega (antes que o futuro se torne presente e desminta a validade). Não se estendem comendas numa passadeira estulta. Não se intuem panegíricos que apenas inebriam e dão corda à inflação do ego. É por dentro deste recolhimento que me afasto dos holofotes que incendeiam a lucidez e emprestam um viés ao olhar. Sinto-me bem-vindo ao anonimato.

Cubro com um véu a opacidade do rosto. De resto, oponho-me à sindicância das almas por vetustos portadores de verdades. Alinho pelas ruas desertas, a mitomania consagrada, uns pós de rebeldia misturados com adiamentos metódicos, tudo benzido por desdeuses sem freio que ensinam, contra o gratuito embaciar do conhecimento, como ser um pária sem dores de consciência.

26.10.23

Vanguarda, para quê (e outras tabernas)?

The Murder Capital, “A Thousand Lives”, in https://www.youtube.com/watch?v=YzgPhjfuUIg

Estava derruída, a paciência, que já enjoavam os mandamentos que confessam a desalma do estabelecido. Antes que fossem escombros, antepunha-se a hipótese do exílio – um exílio que não era territorial. Um fingimento absoluto, carta tirada aos trunfos para ser jogada num movimento contrário ao da maré. Quiseram chamar-lhe vanguarda.

Para estarem na vanguarda nem era preciso contestar burocracias: a adesão era espontânea, só com uma declaração, que tinha de ser validada por outros. Nem era preciso verbalizar a adesão à vanguarda. Não se estranhava que fosse difícil a empreitada de inventariar os que protestavam a pertença à vanguarda.

A ablação voluntária não refreava o entusiasmo por já não pertencerem à turba indistinta que navegava num dicionário permanente de lugares-comuns. Era o direito à diferença, tão democrático – tão animador. Os da vanguarda disputavam os costumes e as regras dos outros. Não os seguiam. Contestavam-nos em direto, como se se tivessem abatido os holofotes sobre a contestação e a multidão restante prestasse atenção a esses protestos (que depressa escarneciam, deles dizendo serem pueris). 

Na vanguarda, a pertença era versátil. O denominador comum era a rejeição dos postulados colados a quem se afirma desta pertença: constituem o cimento sem o qual a comunidade se estilhaça, abrindo rombos na parede por onde podem entrar influências turbulentas. Mas havia quem só soubesse que não se revê no caudal preponderante. Muitos asilavam-se em coutadas de vanguarda por dissidência explícita dos censores habituais. A vanguarda era uma casa aberta. Queria ser a sede de todos os que saem debaixo da asa da normalidade. 

Da casa da vanguarda, secretamente alojada numa taberna rural, ecoava um rumorejo que intuía as dissemelhanças com as preces que corriam a habitualidade. Nela habitava uma amostra plural, mesmo que o seu número não se comparasse com o que engrossa as hostes dos habituados à habitualidade. Na casa da vanguarda não se hostilizavam as diferentes sensibilidades. Por maiores que fossem as diferenças, todos falavam com todos. O que os opunha era menor do que a oposição ao mundo exterior de que se exilaram sob os auspícios da casa da vanguarda. 

Só havia um tabu na taberna da vanguarda: não aceitavam hipostasiar sobre o alargar das fileiras e de como a noção de vanguarda podia esvaziar. Não aceitavam que o seu movimento se transformasse num novo sentir maioritário. Juraram que se esse acaso se desse, seriam os primeiros a lutar contra a força interna que quisesse adulterar o sentido de vanguarda. Nem que fosse precioso um cisma para convocar uma vanguarda por dentro da vanguarda corrompida, ou um palimpsesto de vanguardas sem determinação dos que são genuínos (admitindo a sua pluralidade).

Os que amesendavam numa taberna da vanguarda não conseguiam extinguir uma perplexidade: não sabiam se a vanguarda emergente violava os termos da vanguarda original. A singular igualdade de todos impedia, mas ao mesmo tempo favorecia, estes irredentismos.

25.10.23

As palavras baratas

The Comet Is Coming ft. Kate Tempest, “Blood of the Past”, in https://www.youtube.com/watch?v=G1J8R3rS2k0

Às tantas, há palavras que se libertaram do jugo dos dicionários. Palavras reinventadas no seu sentido por tutores que se autoinvestem nessa condição fundacional. Habitualmente, pessoas que se agarram à liberdade para serem coercivos em relação à liberdade dos outros – mas não interessa, que eles jogam a sua batuta genesíaca contra os que se ousem opor; se não, como entender que forcem a re-significação de palavras (pior: de conceitos) e os imponham aos demais por decreto divino, sob pena de os que ousam dissidir logo serem enxotados? E se, dando corda ao movimento, fôssemos ao baú da (má) História resgatar a identidade de Torquemada para retratar os apóstolos da nova língua?

Hoje, tudo o que é mau é fascismo. O fascismo deixou de ser um conceito operativo (da História, da Ciência Política) e passou a ser a pior forma de abjurar adversários ou de os colocar contra as cordas, no limite do ad hominem. Vulgarizou-se como ofensa, delimitando quem se situa numa extremidade inabitável da barricada. Da esquerda, já era hábito sedimentado: logo à sua direita, no limite do concubinato, levam com o opróbrio fascista quando escorregam para heresias. Agora também há próceres à direita que não enjeitam o qualificativo (colando-o aos radicais islâmicos, por exemplo), nem que seja para ferir a sensibilidade dos habituais apoiantes de palestinos – nem que assim o sejam para pisar os calos do ocidente. Quase se podia generalizar uma lei, por dedução: tens alguém nos antípodas, cola-lhe o rótulo de fascista até que ele se abespinhe e te encha de razão pela violência da sua resposta. Pelo caminho, mandas para o lixo da História e da Ciência Política conceitos que tinham sido assimilados com o apoio do método cientifico. 

Hoje, se não estás pela causa ambientalista és, por inação, perpetrador de genocídio. Encurralam-te no hediondo capitalismo, acusam-te de serem cúmplice do capitalismo, mesmo que tu, pouco mais do que remediado, precises de um trabalho para subsistir e manter a família. Isso não interessa aos novos apóstolos do ambientalismo: devias ser fiel à causa mais politicamente correta, mesmo que isso te mande, juntamente com o agregado familiar, para debaixo da ponte. Devias ser sensível à castração das legítimas aspirações dos teus filhos e dos teus netos enquanto passas ao lado da emergência ambiental e continuas a “colaborar” com os capitalistas que exaurem o mundo e o desqualificam para quem vem depois de ti. Devias ter aprendido, dos princípios da lei, que o seu desconhecimento não legitima o desmazelo – aqui com extensão contextual, para te ensinarem que não mereces perdão se não te informares sobre as boas práticas que não lesam o deus-sagrado-ambiente e não militares num combativo ativismo que reponha a justiça (pela menos a idealizada).

Apanhados no restolho de um ativismo exacerbado, algumas palavras sujeitam-se a um processo de banalização que é ofensivo para quem delas foi vítima no processo histórico. Invocar o genocídio, enxertando-o no oportunismo ambientalista, é ultrajante para os que morreram aos pés de quem intencionalmente o cometeu. Que seria dado a fazer aos apóstolos do ambientalismo se pusessem a mão no poder? Levavam os déspotas do capitalismo ao Tribunal de Haia?

Há outra categoria de peritos que sofrem uma ostracização em curso – os linguistas e filólogos, que emolduraram, com recurso aos cânones, significados de palavras e agora assistem, incrédulos e impotentes, à sua adulteração pelos feitores das novas e imperativas verdades. O mesmo se diga de historiadores e politólogos que acordaram para a banalização de conceitos sem terem sido consultados, eles que terão deixado de perceber da poda. Mas que ninguém se oponha aos reinventores da linguagem, para não serem sujeito a lapidação pública de quem se expõe ao pecado capital: opor-se a suas sumidades e à sua propensão para a intolerância. 

Ou então, submetemo-los a um processo que repristina a justiça (que não é a sua): deixamo-los a falar sozinhos, porque falamos idiomas diferentes, ou falamos o mesmo idioma mas com o recurso a étimos que não correspondem ao significado atribuído por dicionários. Se ficarem a falar sozinhos, só se incomodam a si mesmos. Deixamo-los adulterar as palavras que quiserem e como quiserem; nós, com falta de sintonia pelo novo cânone, não os ouvimos porque não conseguimos entendê-los. E esta poluição sonora, entretanto removida, não é de menosprezar.   

24.10.23

Improbabilidade (short stories #443)

The Breeders ft. J. Mascis, “Divine Mascis”, in https://www.youtube.com/watch?v=XbTHcc01dL8

Era preciso tirar a venda que impedia a inauguração do dia. Juntar ao magma promitente um esteio, fundacional, como se nos convencessem que a paisagem parte das nossas mãos. Não dizíamos “parte das nossas mãos” como se fosse critério de pertença: a paisagem era esculpida por nós, seus tutores avulsos. Não sabíamos por que cais fundeavam as almas despojadas. Se não fosse pela tabela das marés, a maresia ausentava-se de sinónimos e o exílio era o destino pressentido. Não era algo que nos intimidasse. Do que sabíamos das pertenças, não havia muito por onde apaziguar veias tardias. Em vez disso, fundeávamos nas imediações da noite à espera que o sono consumisse a lucidez. Depois, davam-nos uma viagem. Por dentro de uma hibernação à prova de sentidos. De manhã, pouco podíamos dizer dos sonhos. É quando saímos de quem somos à procura de paradeiros sem lugar, apenas uma medida secreta dos povoamentos que se despenham na rarefação de gente; continuamos a ser quem somos. É um paradoxo que não levanta consumições: as incógnitas são lançadas ao solo e não esperamos que delas fruam respostas. Este é o nosso cabimento. Cúmplices de uma gramática singular, a gramática que transforma silêncios em estrofes lapidares. Contamos por metáforas os sentidos embebidos numa proteção do espaço. Sem contarmos, as fronteiras passaram a ser importantes, outra vez. Um arco-íris matinal despenteia o xisto enamorado: é o tapete que os olhos precisavam, extáticos com os socalcos que pareciam as diferentes páginas que irrompiam em anamnese. Combinamos os sortilégios que íamos fabricar. Combinamos a mudez, porque o silêncio fala em nome das palavras milhares. Sabemos que somos magos. As esculturas não precisam de tempo. As palavras agigantam-se na bandeira escondida, bebem inspiração numa gramática que ganha sangue novo. Se não fossem os medos, seríamos menores.

23.10.23

Falésia

Kate Bush, “Cloudbusting” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=mtaTO9NTX34

Os objetos tornavam-se miragens, a sede saciada com o amparo de estrofes continuadas com as bocas famintas. O chão era o melhor seguro de vida. E se o chão se ausentasse: como se comportariam os passos, seriam devotos na errância em vez de tributários do medo?

As questões perfilavam-se na tela arrombada pelos espiões furtivos. Não queriam que o palco fosse aveludado; queriam-no cheio de espinhos, pontiagudamente entrando pelas solas dos sapatos, como se as pessoas fossem forçadas a atravessar um caminho de pedras abraseadas sob o convencimento de um guru psicologicamente arbitrário. Quando dessem conta, sabiam que o precipício não está na ausência de chão, mas num chão intencionalmente adulterado só para alguém conseguir colonizar almas desprevenidas.

Era uma questão de crer – ou de querer. Por diferentes que fossem as avenidas percorridas, elas desaguavam no mesmo e que crer e querer eram sinónimos. Os termos da intendência sobrepunham-se à lucidez. Pairavam outra vez uns espíritos disfarçados de querubins só para arrematar a lucidez. As pessoas ficavam sitiadas pela errância: não sabiam onde estavam e não procuravam saber do paradeiro. Preferiam o esconderijo, como se descobrissem (ou intuíssem descobrir) que precisavam de uma camada alternativa de mundo para tirarem a prova dos nove à utopia. Acreditavam (ou queriam acreditar) que a realidade era pungente, que uma forma de exílio se impunha: um refúgio para serem o que a vida mundana lhes negava.

Deviam-no fazer antes que chegassem à falésia. Conheciam-na. O despenhamento era medonho. Estremeciam só de se aproximarem do limiar, o chão desaparecia e entreviam o emparedado precipício – a morada certa da morte (soletrando-a, sílaba a sílaba: a mo-ra-da cer-ta da mor-te). Sabiam como desviar o pensamento do apocalipse: aquele era um lugar idílico, apesar do pressentimento da morte. Todo o mar que se levantava contra o desfiladeiro entrava nas veias como um bálsamo, aprisionando o medo num precipício. As paisagens idílicas são os contrafortes que repatriam o espectro da morte. 

A falésia não era uma condenação. Era um castelo que aferroava os dias vindouros. 

20.10.23

Late Harvest

Idles, “Dancer”, in https://www.youtube.com/watch?v=A3ZZj5y6Qt4

Não é a podridão que embaraça. Não é a madurez exorbitante que transcende os deslimites. Contra a ditadura do tempo, os bagos que se diriam perdidos na colheita transfiguram as possibilidades. Os braços maduros contemplam os estatutos vindicados pelo apóstolos da decadência: às vezes, os vetustos atravessam-se no erro e desmoralizam a fruição dos bagos decadentes.

A noite mordaz deita-se sobre os rostos desprevenidos. Julga-os pela apreciada podridão arrevesada, está segura da derrota dos oráculos do luar. Se os refrões não fossem repetidos eram circunstâncias avalizadas pelo despudor, cumpriam-se em eufemismos ou promessas de encantamento; ninguém se importunava, tanta a indiferença geral. Os bagos que entram no bolor da podridão estão cercados de parras desmaiadas, aburguesados em estatuto. A eles, a triunfal marcha que se assemelha a hinos míticos, que o néctar fermentado é desproporcional à sua envergonhada feição.

O círculo fecha-se nas imediações desarrumadas que não aceitam tutor. Alguns embaixadores dos cânones vulgarizados torcem o nariz. A podridão não é boa conselheira, advertem. À sua volta, o séquito acena com flores à espera de apodrecerem, pode ser que os embaixadores saiam do quadrado e aceitem o suco dúctil que bebe inspiração em bagos apodrecidos. Teimosos, os embaixadores insistem na pose obnóxia. Lembram generais empoeirados que desfilam entre os destroços como se fosse exemplar a sua coutada. Anestesiados pela inebriação suicida, são abatidos como patos demenciais à espera da bala terminal – não precisaram de jogar à roleta russa. Dizem que partiram deste mundo com o encanto de quem estava cercado por ilusões. Deles não se diga que a paz passou a habitar as suas almas: desaprovaram a sua podridão, cortando caminho até à morte.

As telas maiúsculas gozam de privilégios, impermeabilizam a pele contra as lágrimas estatuárias que desmentem o estio das ideias. A jogo sobe a candidatura das uvas a um passo da podridão. Os estetas das vinhas aprenderam a conferir a beleza da colheita quando apreciada com a distância de um miradouro. Agora reaprenderam os cânones. Os bagos que estão a um passo da podridão são pérolas que se candidatam a património da humanidade. 

Ainda bem que ficaram esquecidos no limiar da decadência. Adiam o esqueleto da vinha, autorizando as flores acobreadas a conviver com os derradeiros bagos. Tomara fossem outros elixires feitos desta destemperança.

19.10.23

As casas que mudam

Ólafur Arnalds, “The Invisible Front”, in https://www.youtube.com/watch?v=9yfL28dhedc

As casas não mudam – diz-se. São como as grandes árvores centrípetas, esteios de alguém, uma identidade entrecruzada nos poros das paredes e no travejamento do telhado, deslaçando o sangue embaciado. 

As casas não mudam, quem muda é quem as habita. Uma casa é o chão diferente que alimenta uma alma. As pessoas mudam de casa porque precisam, ora porque querem. Ora porque querem por precisarem. As casas já lá estão, invariáveis, determinadas. São as casas que começam por mudar quem as habita a partir do dia inaugural. Emprestam um sangue mudado, como se fosse precisa a mudança que em seu céu se acolheu. As casas não ficam à mercê dos moradores. Ainda que o novo habitante tenha a pretensão de rasgar o interior da casa de cima a baixo, não é a re-decoração que a adultera. A casa é muito mais do que esses lampejos. É uma identidade inteira, estrutural, com raízes fundas no futuro. As raízes a que o inquilino não é indiferente.

As casas que mudam passam pelo tempo com a indiferença às tempestades, até aos avales de quem foi seu intérprete interior. Um húmus renovador, à espera do novo morador para que se embeba na pele dura da casa, para combinar uma transfiguração: a casa é que os muda.

A casa que muda é o santuário que desemudece as pessoas que estão por sua conta. À medida de uma tutela, estilhaçando precipícios que foram herdados. A casa, centrípeta como a árvore protagonista, é uma ilha no meio do resto, mesmo que a geografia desminta a insularidade. Passa a ser homónima do seu habitante e este espera que a casa o mude. 

Não tem serventia mudar de casa se a casa não for a muda que a pessoa pressente. As casas que não mudam, não chegam a ser apeadeiros. Deixam de ser o magma demandado para se esvaziarem num conglomerado anódino, um cosmos igual pelas latitudes fora, de cortinas estilhaçadas que deixam à mostra, em convulsão voyeurista, as pessoas descarnadas. Essas não são casas que mudam. São as casas que reproduzem a formatada semelhança de quase todos.

A casa que muda é um bálsamo, as cordas avivadas de violinos cantantes que desmentem pesadelos e deixam alguém escondido de assombrações. A casa que muda é a muda arrematada.

18.10.23

A maldade não existe

PJ Harvey & Johnny Marr, “C’mon Billy” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=OlVAu4Kgg2Y

Mote: filme “A maldade não existe”, de Ryûsuke Hamaguchi.

Um convite deletério: vamos atravessar um corredor propositadamente mantido nas trevas, com a confiança de que na extremidade se encontra um simulacro de oásis. É preciso um oásis para situar a ação e para delimitar as bainhas de um exercício de digestão do mundo na sua nudez complexada.

No fim do corredor – entretanto, saber-se-ia que não era linear: é um labirinto, com muitas e retorcidas curvas –, o oásis onde se aprende que não há pessoas malvadas. Por mais que a maldade gratuita seja autenticada possivelmente à razão de vários atos por minuto, os atos de maldade emancipam-se de quem os comete. Mesmo os que reincidem na maldade e sejam tidos como malvados aparentemente incorrigíveis, a propensão para a maldade é mantida por atos e gestos que não têm correspondência com um quadro mental assente na razão.

(Admito que o leitor pode mergulhar na hermenêutica, recorrendo ao vasto catálogo filosófico, para suscitar perguntas sobre a ontologia da razão. Dou esse salto metodológico, propositadamente: não inquiro os meandros da razão, nem a submeto a um criterioso teste que o valide como prova de vida; assumo a sua existência e admito que possa conter diferentes entendimentos para diferentes pessoas.)

A maldade é um desvio. Mesmo nos casos em que uma investigação meticulosa arremate provas da sua autenticidade. Um instante, ou um demorado conjunto de instantes, ateiam a maldade. Para bem da sanidade antropológica, admito uma hipótese: assim que a maldade é consumada, o agente propõe-se ao arrependimento. Até nos casos de reincidência: aí repetem-se os momentos de arrependimento e a procura pela redenção (ou não – a sua ausência não prejudica o arrependimento que emerge com a espontaneidade que a vontade não consegue domar).

A maldade é a intimidação que adultera a vontade dos agentes atropelados pela sedução da maldade. Ao saberem que estão a congeminar a maldade, sabem que são atirados para o canto onde se aloja o numeroso exército de maldosos. Não se acredite que a sua escala de valores (sem conotações filosóficas, outra vez) ignora a contundência da maldade e as dores, imediatas ou apenas mediatas, que a maldade deixará para memória futura. Ou então, são conduzidos por uma lógica de números: identificam a elevada frequência de maldades, apreciam a inimputabilidade decorrente e situam-se entre a maioria para não serem vítimas de maldade.

Mas a maldade só tem vítimas: aquelas que são levadas na enxurrada da maldade; e os que a cometem, aprisionados no remorso, cientes que o futuro será um farol ateado por novos mandamentos de maldade, sitiados por uma vontade, que não dominam, de reiterar a maldade.

(Algum dia teria de exibir otimismo antropológico. Voltei ao início do texto e, no seu final, fiquei sem perceber se o mesmo se limitou a um exercício de cinismo ou se encenou um otimismo antropológico que é apenas o fingimento da sua antítese.)

17.10.23

Imitação

Davendra Bahnart, “Twin”, in https://www.youtube.com/watch?v=ynRbKEA2ai8

Os pináculos da autenticidade, esses puristas emasculados, vitrines amovíveis de virtudes que irradiam para os que delas estão carentes (a julgar pela proficiência da sua particular lente, uma imensa maioria), não se escondem dos julgamentos sumários: o lamentável estado em que nos encontramos radica na simplória propensão para a imitação de outros.

Estes penhores da decência dizem ao que vão: quem interioriza a imitação de outros foge de si próprio, adultera-se para ser uma revisitação (ao menos tentada) de outros que servem de inspiração. Este despojamento é apedrejado pelos puristas das almas, aqueles que não se cansam de inventariar os pecadilhos alheios e (daqui se desconfia) omitem as suas vergonhas interiores. 

(A concentração nas impurezas à sua volta poderá representar a confissão das suas próprias impurezas, todavia varridas para debaixo do tapete onde lobrigam os outros – os que são convenientemente outros.)

Pudessem entender que as pessoas usufruem de uma liberdade ao menos formalmente igual, os zelosos cuidadores das almas alheias deviam reconhecer essa liberdade sem assinarem libelos acusatórios seguidos de condenações exemplares. Não se dê o acaso destes condutores de almas não terem conseguido exorcizar os seus privativos fantasmas e, ato contínuo, tenham prosseguido para uma auto-canonização posterior a serem cópias de outrem, ficando a falar, enfatuados, na pose senatorial de quem tem a certeza que pode pôr e dispor do que não lhe pertence. São os “okupas” das almas que não lhes pertencem – uma espécie moderna de expropriadores que só encontram oxigénio quando estão a olhar para (e pelos) outros.

Se há imitadores, qual é o problema? São os zelosos síndicos que se constituem na posição de imitador? Se eles garantem que não, deixem a emulação de serem quem não são para os outros. Sem juízos de valor, sem agredir as fronteiras que os delimitam dos outros. Imitar alguém é uma adulteração do ser – é crime? É um juízo que fica a cargo de quem passa pelo processo de transfiguração interna: não deve ser fácil reconhecer que é melhor tentar ser uma cópia de alguém do que continuar a ser a imprestável personagem que assim se auto-desconsidera. 

E a alguém é dado ser purista? Se não fôssemos sensíveis aos outros, seríamos acusados de misantropia, ou pelo menos de um ensimesmar que depressa andaria nas fronteiras do patológico. Se somos gregários e ficamos expostos aos outros, quem pode evitar imitar, por pouco ou muito que seja, os outros que adejam à nossa volta?

Os metódicos observadores das desandanças das outras almas são os mostruários de uma pureza digna de dizerem, de si mesmos, autênticas denominações de origem protegida. Ah!, vassalos de uma pureza que tem tanto de inadiável como de quimérica.

16.10.23

Não queiras redenção

Tinariwen, “Tenere Den”, in https://www.youtube.com/watch?v=5c9t7BAn3R4 

Não seja pela absolvição. Não é por medo da admoestação, também. É a menoridade das memórias – essa perpétua ditadura que se abate – que envenena o sangue que se emulsiona na reparação do passado. Em cada catedral, um séquito de cobradores está à espera do pagamento da dívida. Assustados, inscrevemos a redenção como intendência no caderno de encargos.

Podia haver rigor na identificação do mercado das almas. Dissessem, com a precisão convincente, que roteiro espera quem for assoalhado num lugar contrafeito como promessa eterna de desassossego. Como condenação eterna.  Não há conhecimento de tal mercado. As almas não se mercam através de intermediários sem rosto que se fazem passar por vultos medonhos, os que detêm a sede de justiça nas mãos. Vultos em quem foi depositado o poder de arrematar as almas possivelmente desapiedadas, as que estão desenganadas pelos desenganos que cometeram. E nós, cometas algures, passivamente numa paragem enquanto não é hora de uma barca vetusta parar para amordaçar a vontade dos que rejeitam o acerto de responsabilidades.

Se esse ónus for vertido no caderno de encargos, que sejamos os únicos a apurar o acerto de contas. Não precisamos de redenção se o propósito é a sua ostentação. Não contam as indulgências, ou os irreparáveis corretivos, que bolçam em forma de ameaça sobre o sono que se transforma em pesadelo mortiço. A redenção só é válida se for uma demanda interior e lobrigar num território exíguo – o mapa que coincide com o eu que se despe para ficar à mercê da redenção. Sem mais ninguém dela saber.

 A redenção é dispensável, é uma farsa que vigariza o sangue cansado que habita as veias próprias. A empreitada que define sem logros a autenticidade da redenção é escarpada. Melhor será escapar ao engenho que se abate sobre os que são assaltados pela injunção da redenção. Os vulcões têm crateras por cicatrizar e as suas veias continuam abraseadas pelos estorvos que se apanham pela vida fora. 

Não é a redenção que vem circuncisar as crateras que são as fraturas expostas da alma. É o medo de não estar interiormente à altura. 

13.10.23

Prolongamento

Damon Albarn, “Polaris” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=JaxIQdHYt8I

Ninguém precisa de virar a vida do avesso. Ninguém se pacifica se um mago jurar que o tempo tem prolongamento. (Os magos deviam ser presos por serem um logro maior do que o maior dos farsantes conhecidos.) 

Regresso à casa da partida: ninguém precisa de virar a vida do avesso. Virada do avesso, ela adultera-se e não chega a ser tutelada por quem acredita que a virou do avesso. Sai da sua órbita – e ele ou ela perdem o inventário da vida. As muralhas do entendimento parecem absortas, perdidas no meio de um denso nevoeiro. 

Às vezes, o desentendimento apoquenta a lucidez: tomam-se dores que não são e angústias ao desbarato são arrematadas com um estouvamento pária. Se estas fossem as consumições maiores, os engenheiros da alma estavam condenados à extinção. Outras vezes, o desassossego contínuo despedaça os tapetes em que serenamente as vidas eram conduzidas. O sangue desamestrado corre aos solavancos, ateando a carne contra um labirinto que parece desembarcado de um pesadelo mau. Às vezes, intuem a vida do avesso.

Todos eles, arreliados ou não, deviam sindicar o prolongamento da vida. Deviam cimentar a ideia de que o tempo dado é escasso. Quem fosse tutor do tempo seria desafiado a prolongá-lo em cada vida. Seria um ultraje aos condenados ao suicídio – dir-se-ia: eles são agredidos pelo tempo sempre abundante e julgam-no um acaso que torna uma vida intolerável. 

Fora desse mundo agitado, adejam as vidas que não têm sede de angústia. As que souberam tirar as mordaças sobrepostas à mediação de engenheiros sociais e se tornaram extravagantes: as vidas que protestam contra a exiguidade do tempo. Elas estão sempre prontas a militar contra o fortuito. Aspiram a um prolongamento do que houve em memória futura. Até que sejam espelho esculpido pelas mãos próprias e fujam do contrabando ardilosamente encenado pelos impostores que sobem constantemente a palco.  

12.10.23

Marcar território (como os gatos)

Explosions in the Sky, “First Breath After Coma” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=OpuVcJKN9Kc

Pelo meio das flores silvestres, um odor inconfundível. Um traço de trovoada feita de véspera, o crepúsculo tirado ao avesso, a neblina que faz rima com a manhã, um rasto de alguém que arroteou caminho pelo meio das urzes, fazendo do mapa campestre o exílio do anonimato.

Como os gatos, que são territoriais e lançam estandartes com a mediação de jatos de urina que são o aviso prévio para os rivais. Um território com tutor não admite concorrência. Os gatos deviam ser adorados pelos apóstatas dos mercados que assentam na livre concorrência. Sem saberem, os gatos constituíram-se paladinos de um marxismo tardio. 

Não que interesse (a divagação teórica). Os gatos sabem da delimitação da sua coutada. Repelem os rivais, a menos que sejam derrotados e tenham de ser nómadas, partindo em demanda de outro paradeiro. Os gatos podiam ser a inspiração dos misantropos. Fica à consideração dos teóricos: os marxistas e os misantropos deviam ser uma comandita. 

Mas isso também não interessa. As raízes não precisam de ser reviradas para se anestesiar o odor que um gato povoou. O aroma está ao alcance de humanas narinas – que se dirá das narinas mais sensíveis dos felídeos? Está por aferir o supremo egoísmo de cada gato que, amordaçado pelo sortilégio das hormonas, vive um sobressalto contínuo. Se não precisasse de uma coutada, não avivava a marcação do território para esconjurar os outros gatos que sejam concorrência. Vivem sozinhos (menos quando competem por uma fêmea no cio) e têm sete vidas. Nós, simples humanos, temos apenas uma e não ensimesmamos. Parece que a medida nos é desfavorável.

A (des)comparação pode atuar em nosso desfavor. Agiríamos como gatos se não fôssemos gregários. Agiríamos como gatos se não exorcizássemos a concorrência. Agiríamos como gatos se fôssemos marxistas? Não sabemos; não somos marxistas. Mas ficamos perto de sermos gatos quando em nós levita a pele tatuada de misantropia. Não queremos os outros, não queremos nada deles que não seja instrumental. Como em Sartre, os outros são o inferno – e os gatos esconjuram-nos com urina seletiva amealhada na sua coutada, já que nós reservamos a urina para as latrinas.

Ainda bem que não miamos. Os gatos não seriam o mesmo abismo.

11.10.23

Se não a advertência

Blur, “Trimm Trabb”, in https://www.youtube.com/watch?v=RPBje1VIVc4


“(...) atravessavas a rua com duas mãos de alegria”. 

Paulo José Miranda, in “Perder a melodia”.

Era de entardeceres que falávamos, ou de matéria sensível para almas à contraluz, ou apenas sobre o insólito que imediatamente o deixava de ser assim que inventariado. Congeminavam-se as veias contra os contratempos que prosperavam nos dorsos de vultos avulsos. As malhas que teciam conspirações eram comparadas com a podridão que ascetas da misantropia não cessavam de derramar. Se não fosse pelas advertências, éramos reféns de uma vida trespassada pela frugalidade. 

Mas queríamos uma vida com as cores embebidas no salitre válido, queríamo-la devolvida a um magma heurístico, como se precisássemos de arrotear a lava hirsuta deixada para trás pelo tempo deserdado. Queríamos vida com o aroma pretérito da maresia, só para saber idóneos os mares vindouros. Se fosse preciso, emigrávamos – era como uma mnemónica que arrematava um necessário porto de abrigo, para o caso do exílio se ajuramentar contra a lógica do precipício. “Não estamos contentes”: esse era um lugar-comum em que muitos eram versados contra o princípio geral da indiferença de outros e de uma certa bulimia social de outros ainda. E nós, ali pelo meio, autores de uma meação sardónica, queríamos fugir das advertências. Eram os “mas” consecutivos que traziam uma safra infecunda, um chão cheio de nada vivo, rochas que nem para paisagem serviam.

Se fugíssemos chamavam-nos covardes. Mas que importa, se o que dizemos não é pranto dos juízos dos outros, se não confiamos no seu mau juízo? Se fugíssemos, estávamos à mercê da adstringência moral dos que trazem ao peito a sanha dos julgamentos que são válidos desde que não sejam virados para o espelho que os confronta. Conferimos a advertência, devidamente sopesada na indiferença de quem tanto vale como um zero soberbo. 

Nas mãos nossas, o rosário onde se aloja o mantimento. Chamamos os nomes que se sobrepõem no tabuleiro onde temos ainda algumas peças à nossa mercê. Não são todas – algumas delas foram sacrificadas, umas propositadamente, outras por acidentes imprevistos, outras, ainda, por lucidez ausente. As peças que estão em sobra desfiliam as advertências que se jogam como granadas prestes a estourar. Escondemo-nos do medo, dos vultos seráficos que povoam esse medo, a geografia de que não sabemos paradeiro. 

E mergulhamos as mãos nessa avenida, onde só nós sabemos estar escondido o manual da alegria.

10.10.23

Clarão

The Murder Capital, “Heart in the Hole”, in https://www.youtube.com/watch?v=dO4BUI6B5og 

Não eram precisos telescópios para ler o horizonte: diz-se que é por lá que se entreabrem as portas que vão dar ao futuro, mas não acreditamos. Jogam-se os verbos no passado para dele extrair a linhagem do sal a ponto, antes de sabermos se ao cardamomo, ou a outra especiaria, vai pedir um extrato. Concordamos que somos os rostos que compõem as rosas sobrantes, deixando aos cemitérios o ar pesado de um lugar de vidas ausentes.

Atiramos o olhar furtivamente para o horizonte. Antes que o horizonte seja furtivo – como se isso fosse possível, ao estabelecermos que não é a carência de luz que anula o horizonte. Mas depressa andamos com os relógios na horizontal. Temos de caiar este tempo visível. Precisamos, nem que seja para fazer de conta, que ele se mantenha estoicamente vivo dentro de uma incubadora. E depois, inventamos a sua claridade. Como se nos dessem para as mãos uma paleta de cores e uma tela e nos coubesse emoldurar uma petição para um hino sem pátria ou uma terra que não precisa de bandeira hasteada. A voz que entoamos, una, toma de assalto a empreitada. Não conhecemos melhores procuradores. 

Seremos nós os procuradores inteiros, os que dão margem aos rios que crescem de caudal, extinguindo o amarelecido das páginas só por elas passaram pelos nossos dedos. Juntamos as pedras maceradas que se arrastam no caminho. A nossa filigrana pede meças ao improvável. É o mundo lá fora que se importa com as nossas andanças. Dentro de nós, é o mundo que se transfigura em nómada. As estátuas já não são um ocaso.

Toda a claridade do dia traz em si o sangue de que somos apátridas. Juntamos os olhos na imensidão do dia, como se soubéssemos que o dia se estende por dentro da noite (sem ser junho). Somos cuidadores da paisagem que vem de frente até nós. Se fossem os rios a atravessar as pontes, todo o magma vindicado estaria por conta do acaso. Mas não é assim. Somos os faróis de onde procede a claridade, vulcões desassisados que se antepõem ao critério da razão. 

Não queremos saber da razão. Não queremos ser aval de mentiras consagradas. Preferimos ser rebeldes com causa delimitada, a periferia sempre alargada para outras fronteiras, até que de nós irrompa o deslimite militante: o vulcão que dizem adormecido mas nós sabemos de atalaia.

9.10.23

O que fazemos com os rufias? (E quem são os rufias?)

Expresso Transatlântico, “Ressaca bailada”, in https://www.youtube.com/watch?v=4dYnJP-XqXU

Mote:

“As Constituições são como as salsichas: o melhor, é não sabermos como foram feitas.”

(Adaptado de autor anónimo, 

ou erradamente atribuído a Otto von Bismark)

Foi convocada uma manifestação de rua por movimentos cívicos que protestam contra a falta de casas e a carestia da habitação (pelo meio, o capitalismo também vai de arrasto, et pour cause!). Junta-se quem quer. Este é um país onde reina a liberdade e, que seja do conhecimento da Constituição, ela não é condicional nem condicionada segundo quem a quer frequentar. Dirigentes da esquerda radical e da extrema-esquerda juntaram-se ao protesto. É legítimo e habitual. Três deputados do partido de extrema-direita tencionavam alinhar na marcha e foram impedidos, depois de terem sido insultados e até acossados por ameaças de agressão.

Aprendemos com o episódio que há manifestações a que nem todos podem ir. Por acaso, foram deputados da extrema-direita; e se fossem deputados do centro-direita ou da direita moderada, também eram barrados a meio da avenida? Se calhar, sim: pois se até os do PS são “fascistas” nos dias maus...Afinal, as manifestações são tuteladas e há uma voz superior, “coletiva”, como é da praxe, a ditar quem pode alinhar na manifestação e quem vê o acesso negado. A Constituição está enganada: afinal, o direito de admissão em manifestações é reservado segundo o entendimento seletivo da “voz coletiva” que comanda os manifestantes. Devia-se pensar em credenciar os porteiros de manifestações.

Não sei o que mais incomoda no episódio: se parecer (mas, é bom notar, nem isso é) que estou solidário com os três deputados com saudades de Salazar, ou se a arrogância de certos militantes de extrema-esquerda que se atribuem o direito de interpretar o significado de liberdade ao arrepio de valores constitucionais. Os cordões sanitários à extrema-direita são devidos, mas não os que impeçam um direito constitucionalmente consagrado, um que, ainda por cima, é genético à democracia: o direito de manifestação. Mandou a ironia do destino que o episódio tivesse a serventia de identificar radicais de esquerda por aquilo que um observador imparcial consegue notar: a sua conceção de liberdade é vista de través, considerando-se no direito de atuarem como porteiros da festa sem que alguém os tenha mandatado para o serem. 

Se a extrema-direita é ostracizada, e devidamente, pelo que defende e da forma que defende, enquanto tiver as portas da democracia abertas não se concebe como guardiães não solicitados da mesma decidam que os que militantes de extrema-direita devem ser excluídos do jogo da democracia. Vem mesmo a calhar, porque ultimamente o argumento que serve para fundamentar a exclusão da extrema-direita (argumento de facto, mas não jurisdicionalmente validado) é ela não se rever em valores constitucionais que são matriz da democracia. A ironia que o destino arrematou é serem militantes de extrema-esquerda a passarem por cima de tribunais e a restringirem um direito constitucional fundamental a deputados da extrema-direita que queriam integrar a manifestação. Para o caso de os porteiros estarem esquecidos, eram deputados à Assembleia da República, o órgão de soberania por excelência da democracia, que foram impedidos de entrar na manifestação. 

Não tem validade outro argumento invocado para a exclusão: diz-se que os três deputados foram à manifestação só para provocar. Antes de lhes terem perguntado, tiraram a limpo que essa era a sua intenção. Por vezes, podemos ler intenções nas entrelinhas, mas de outras vezes elas ficam propositadamente sublinhadas, e a tinta-da-china, nas páginas que mostram a narrativa que convém. Nem que atropelem a liberdade de que se dizem procuradores maiores – nem que ofendam a democracia (a apertada conceção que da democracia têm). As deduções ganham valor de prova por cima da voz dos que se submetem a um arremedo de julgamento sumário.

E de gente tão letrada (não esquecer os pergaminhos intelectuais e a superioridade moral levantada constantemente pelos radicais de esquerda), não se esperava que caíssem na armadilha dos deputados de extrema-direita. Estes depressa se puseram no papel de vítima, logo numa terra que tem a irresistível propensão para ser solidária com vítimas de diversa estirpe. Para os manifestantes que atuaram como porteiros – e para os dirigentes dos partidos desta margem que vieram dizer que o cartão vermelho passou no crivo do seu particular VAR – sobrou a incontinência de serem eles próprios a dar palco a quem quiseram impedir de participar na manifestação. 

Tivessem a lucidez de dedicar a máxima indiferença aos “intrusos” de extrema-direita e poucos teriam dado conta que a manifestação tinha sido contaminada com a sua presença. Eis um caso típico de tiros assestados nos dois pés: num dos pés, por darem protagonismo a quem queriam silenciar; no outro, ao deixarem patente a sua linhagem.

6.10.23

Olho nu

Indignu, “A noturna”, in https://www.youtube.com/watch?v=-FzLBAitC50

Tiraram os véus que embaciavam o dia. O restolho outonal ainda não existia – um perito aconselhou que esqueçamos o Outono, tendemos para tudo se resumir a duas estações e o Outono não é uma delas. Podia-se dizer que daí não vinha dano ao mundo: as folhas caducas que atapetam o chão ferem o olhar e o ruído estremunhado dos pés quando calcam a folhagem decadente não é melífluo. Os que contemplam o Outono como uma tentativa de belo discordam. 

Ninguém proteste contra a nudez do olhar. Descomprometido, sem ser amurado, sem sacerdotes que o insinuem pela meação, aprendendo-o por ser a levitação máxima da liberdade. É através do olho nu que se consegue decantar as impurezas que adulteram o que seja paisagem. Não são as penumbras que embaraçam a nitidez: a penumbra faz parte da constelação de sombras que se abate sobre as coisas e que as compõe. Às vezes, é a penumbra que desembaraça um sentido poético de outro modo ocultado.

O olhar adestrado pelas convenções é um olhar sujeito a liberdade condicional. Contrafeito por filtros ditados pelo arbítrio de mediadores não benévolos. Eles limitam-se à usurpação dos outros só para ostentarem esse poder em público e serem venerados. O olho nu procura essa nudez que se descompromete de embaraços e de grilhetas. Arremete contra as demãos que inventariam uma diferente forma de as coisas aparecerem sob o jugo do olhar. Elas são o seu próprio jugo. Jogam-se em sucessivas camadas que rebentam por dentro do corpo, apanhando-o à falsa fé.

É preciso ter o olhar nu na mira que faz observação ao que seja limítrofe. É o olhar nu que extingue, e logo à boca de cena, os mastins que se aproveitam da candura indiferente das pessoas para lhes ditarem como é o olhar e como devem olhar. Instruídos à partida, passam a ter um olhar contingente. Abraçado à vontade dos instrutores. Fabricado, artificial. Aprendendo a ser o que não seriam se ao olhar fosse devolvida a nudez original. Ou a nudez que o olhar quisesse que fosse sua.

5.10.23

Oposição à oposição

Sorry, “Key to the City”, in https://www.youtube.com/watch?v=uF7GaqwEUVw

Sabiam que o silêncio sobre os oponentes podia ser a caução da sua oposição. O silêncio exercia-se como espada do consentimento: ao nada contraporem à arguição dos oponentes, davam-lhes chancela. Como se o silêncio fosse uma rima com os que se situavam do outro lado da trincheira. 

A tribalização da rivalidade não consentia essa apatia. Todos sabiam que tudo era reduzido a duas fações (nós e eles, os nossos oponentes), mesmo que alguns peritos, ainda ungidos de uma dose seráfica de paciência, explicassem que a constelação de posições se inclinava para a pluralidade. As energias eram depositadas na recusa dos oponentes. Em vez de se fazerem à vida para a empreitada esperada de quem tinha sido escolhido por uma maioria, dedicavam-se a contrariar quem os contrariava. 

Do lado de fora, ninguém percebia que ser oposição à oposição tinha um significado todavia menosprezado: era como se houvesse um direito legítimo (dir-se-ia, divino) à perpetuação no poder, a oposição esvaziada pela oposição que, com esta oposição sistemática à oposição, a esventrava. Insinuados os laivos de totalitarismo por dentro da democracia, o apuro da oposição à oposição esvaziava as probabilidades de a oposição trocar de lugar com quem lhe fazia tanta oposição.

A perícia da oposição à oposição distraía os desatentos. Julgavam que tudo se limitava a uns jogos florentinos em que se distinguiam personagens eivadas de retórica gongórica, desprovida de substância, que se entretinham com as fraciúnculas da tática e ignoravam a diligência da estratégia. Os incautos não davam conta que ao ser gasto tempo com a oposição à oposição eram desviados recursos da incumbência que estava selada no contrato que legitimava a posse do poder. Parecia que o poder existia para impedir a oposição de ser poder. O resto era acessório. E o resto eram as funções esperadas de quem é investido de cuidar dos males da comunidade e de a dirigir para um futuro animador.

A oposição à oposição era bizarra porque a oposição estava trespassada por traços contínuos de fragilidade. Se era fraca a oposição, a insistência na oposição à oposição era a prova da mediocridade que atravessa a oposição e quem, por dentro das sinecuras mandantes, se opõe à oposição em vez do tomar o leme deixado aos cuidados da errância. 

E os pânditas locais, distraídos com o princípio geral de frivolidade, eram os procuradores maiores deste estado vegetativo que vestia o território. Pelo caminho que o tempo fizera, outros que dantes estavam atrás nas várias escaldas medidoras passaram à frente. E a oposição à oposição mete uma máscara teatral e, enquanto não se entretém a ser oposição à oposição, conta farsas sobre o estado em que estamos.  

4.10.23

Objeção de consciência

Ty Segall & the Freedom Band, “Waxman” (live at KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=21HVihTLI5w

Partiam enganados para as batalhadas terçadas pelos maiores covardes. Não sabiam. Ou fingiam que não sabiam: a coragem rimava com valores exaltados e ninguém podia virar a cara à defesa de todos, se fosse preciso pegar em armas e morrer no campo da batalha espezinhado como se fosse um percevejo miserável que o entejo obriga a matar. Partiam, uns sem olhar para a família que deixavam no cais, desfeita em prantos a encomendar o funeral a destempo (ou em adivinhação do tempo). Outros, que não queriam dar parte de fraco, erguiam o olhar por trás das costas: tinham um terrível certeza de que era a última vez que viam a família que olhava para eles com uma comiseração de si mesmos.

Os que se desterravam voluntariamente eram abjurados. Tidos como os maiores covardes, não dando corpo à obrigação de defender a terra contra a invasão, fugindo da solidariedade com todos os outros que partiam para regressarem numa sepultura barata, ou como soldados anónimos (o que ainda era pior). Que ninguém dissesse destes errantes que eram os mais judiciosos. Não podia ser: eles eram párias, devia ser-lhes retirada a nacionalidade para se tornarem apátridas, aquele chão que ninguém quer nem para seus pés pisarem. 

As guerras sempre foram desiguais. Os maiores covardes, refugiados nos quarteis, a desenharem a tática a regra e esquadro, encomendando à morte dois ou três batalhões com a frieza de quem não sabe que joga com vidas. Sem saberem, esses medalhados, que as vidas são todas, por igual, importantes. A desigualdade das guerras que mais importa não é a desigualdade de meios e de força entre os beligerantes: é a desigualdade entre quem manda para o campo de batalha corpos inocentes para serem sacrificados e os que vão, mandados, sem contestarem ordens, rebanhamente.

A objeção de consciência é dos maiores privilégios da civilização. Cada um pode ajuizar se a dignidade pessoal está em causa ao obedecer a ordens lunáticas de um punhado de generais. A objeção de consciência corresponde à emancipação de um povo. Podem os seus constituintes não saber que a objeção de consciência está a meia dúzia de palavras (e de um formulário qualquer) e ser pouco usada. O passa a palavra pode liquidar as barreiras à comunicação e ao conhecimento. Para a objeção de consciência se tornar norma. 

Talvez não seja por acaso: a objeção da consciência, um ónus da civilidade que os mandantes tiveram de aceitar, corresponde à menor assiduidade das guerras. Sem corpos não se alimentam exércitos. A menos que a modernidade mostre, para desdém dos que se horrorizam com os “teatros de guerra”, que agora são aviões não tripulados que fazem as despesas dos belicismos hormonais. Porém, por trás de um tripulante remoto destas máquinas há uma mente que se pode sujeitar à objeção de consciência.

Talvez se um dia acordássemos e nos impusemos resolutamente objetores de consciência, os generais ficassem sozinhos a brincar às guerras, e elas começassem a ser extintas. Seria uma daquelas extinções a bem da espécie – um extinção agradavelmente antropológica. 

3.10.23

Como desaprender a arrumar gavetas

Memorials, “Sportswear Couture”, in https://www.youtube.com/watch?v=0jZEQT55lYg

O penteado rebelde despenhava-se nas vírgulas escondidas (as pessoas tinham a mania de deitar vírgulas fora do sítio). Agora, até havia cursos para as pessoas aprenderem a arrumar a roupa. Um dia destes, inventam cursos para aprender cursos, já que aprender turco é tão difícil.

Em vez disso, apanharam o autocarro para a praia. Queriam sentir a maresia. Viram, numa daquelas modernas aplicações de telemóvel que informam sobre tudo e mais alguma coisa, que as condições estavam propícias à maresia. Quando chegaram, foram desenganados. Atiram a aplicação do telemóvel para o lixo. Nem deram a oportunidade de defender a sua causa. Poderiam aprender que as condições mudaram entre o sair de casa e a chegada do autocarro ao litoral. O tempo não é uma condição estática.

Já que estavam em frente ao mar – pensou ele – podiam olhar para o horizonte como quem pede inspiração para um poema. É um mito infundamentado. Não havendo cursos para decifrar a quimera que se esconde atrás do horizonte (o horizonte é tão sedutor para um exército de enamorados), podiam concorrer a um curso de escrita criativa. Hoje nem é preciso saber escrever – o “saber escrever” tornou-se tão maleável que se defende, até na academia, que todos escrevem bem, até aqueles que têm um superavit de erros ortográficos e os outros que se entaramelam na gramática e mais ainda na sintaxe. A proposta do entardecer podia ser esta estrofe: “fecha-se o punho no avesso do sangue, tudo refém de um ponto e vírgula”. O resto do poema ficaria para outras núpcias. Ou então, aquele seria o poema.

No dia seguinte, bateram à porta das ideias. Era oficial: o dia estava a jeito da criatividade, é como naqueles dias de lua grávida em que os lobos, imbatíveis, vencem a demais fauna. Pediu ajuda para arrumar as gavetas. Deviam estar desarrumadas. Confirmou o contrário. Se fosse doutora das almas, talvez dissesse que tanta harmonia era patológica. Merecia o prémio Nobel da arrumação. Ficou surpresa. Ele parecia-lhe anárquico, intensamente desorganizado, incapaz de se reger por um interno fio de prumo. 

Ele insistiu: “preciso que me ajudes. A desaprender a arrumar as gavetas. Quero que elas não sejam o exílio do meu estado estrutural de caos sem rédea. Ou então, a desorganização que deixo à mostra é o refúgio da compulsão que me impõe toda esta meticulosidade. Preciso que me libertes de mim. Que desapertes o arnês que limita a liberdade. Sozinho, não o consigo. Deixo-me à prova perante ti. E ponho-te à prova: digo-te, à partida, que não sou fácil de desaparafusar.”

Ela passou a ensinar como desaprender a arrumar gavetas. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, o índice de felicidade atingiu níveis inesperados, nunca sentidos dantes. Ela já estava na calha para uma comenda presidencial no dia das comendas presidenciais. 

2.10.23

O dinheiro que arde nas mãos

David Byrne & Yo La Tengo, “Who Has Seen the Wind”, in https://www.youtube.com/watch?v=NvLgl-Y23u4

Mote: “Quero é vida boa”. 

Esse dinheiro vomita as entranhas e tu não consegues sentir as náuseas. Tu és o eufemismo de nauseabundo. Pudera que não sintas o odor pútrido que deixas atrás de ti: tens as mãos chumbadas por esse dinheiro podre. Pavoneias uma superioridade que só tu consegues medir. Desconta-se a hipótese de não teres aprendido um módico de cidadania na escola, ou de os teus pais (eles não são culpados por quem te tornaste) não terem sabido dar uma educação que permita distinguir o reprovável e o razoável.

Dizes, em confidência, que não queres saber de onde vem o dinheiro, o que tens de fazer para a ele ganhar direito, e muito menos se decaíste num crime que, a ser descoberto, merece punição severa. Não queres saber que outros haja que têm as mesmas aspirações e ficam à míngua, porque o mercado das sinecuras é restrito (como diz o povo: sete cães a um osso). Só queres saber como podes dar cumprimento às pretensões que foram sendo encavalitadas no armazém dos sonhos. Não te importas que te chamem burguês, que te censurem a vertigem consumista, o desejo por bens de luxo, o estatuto que passas a ostentar como um general alardeia comendas à lapela. Decidiste que viverias numa ilha em que só tu contas. Não queres saber que os correligionários instruam as massas sobre as virtudes da ética republicana. A ética republicana que seja cega, surda e muda para os teus prazeres dispendiosos.

No viés do tua míope forma de estar, só tu é que contas. Mesmo que tenhas de contar com alguns que sejam a caução para o descaminho que patrocinas. Sem esse descaminho, o dinheiro que chega às tuas mãos não é dinheiro que arde. Sem os outros que afivelam esse descaminho, tudo não passa de uma ilusão e tu, um pobre arrivista que renega as origens por só ambicionar olhar para cima. Nesse viés que se tornou teu grupo sanguíneo, admites que não terias a abundância, não te seria dado viver como um burguês afetado e cheio de maneirismos, se o dinheiro que financia os vícios não fosse dinheiro podre. Só sabes da existência de dinheiro podre. Já nem consegues imaginar o que será dinheiro que não arde nas tuas mãos. Desconheces que haja uma proporção tabelada entre meios e fins.

Insistes que não és caso único. Alguém contrapõe que os exemplos a seguir devem ser outros e tu acusa-lo de lirismo, advertes que este é um lugar aparentado com uma selva onde só os mais capazes é que sobrevivem. Não estranhas o silêncio do teu interlocutor. A incomensurável autoestima faz-te transbordar da imagem que tens de ti: o interlocutor ficou convencido com a tua retórica – murmuras em sinal de prazer. Nem percebes que te deixou a falar sozinho. Sozinho. É como arriscas ficar se os teus ardis forem apanhados no trânsito dos sacos onde se lava a roupa suja. 

Nessa altura saberás o custo da solidão, pois já não tens umbigo para cultivar nem cumplicidades que atem reciprocamente os seus rabos de palha.