17.10.23

Imitação

Davendra Bahnart, “Twin”, in https://www.youtube.com/watch?v=ynRbKEA2ai8

Os pináculos da autenticidade, esses puristas emasculados, vitrines amovíveis de virtudes que irradiam para os que delas estão carentes (a julgar pela proficiência da sua particular lente, uma imensa maioria), não se escondem dos julgamentos sumários: o lamentável estado em que nos encontramos radica na simplória propensão para a imitação de outros.

Estes penhores da decência dizem ao que vão: quem interioriza a imitação de outros foge de si próprio, adultera-se para ser uma revisitação (ao menos tentada) de outros que servem de inspiração. Este despojamento é apedrejado pelos puristas das almas, aqueles que não se cansam de inventariar os pecadilhos alheios e (daqui se desconfia) omitem as suas vergonhas interiores. 

(A concentração nas impurezas à sua volta poderá representar a confissão das suas próprias impurezas, todavia varridas para debaixo do tapete onde lobrigam os outros – os que são convenientemente outros.)

Pudessem entender que as pessoas usufruem de uma liberdade ao menos formalmente igual, os zelosos cuidadores das almas alheias deviam reconhecer essa liberdade sem assinarem libelos acusatórios seguidos de condenações exemplares. Não se dê o acaso destes condutores de almas não terem conseguido exorcizar os seus privativos fantasmas e, ato contínuo, tenham prosseguido para uma auto-canonização posterior a serem cópias de outrem, ficando a falar, enfatuados, na pose senatorial de quem tem a certeza que pode pôr e dispor do que não lhe pertence. São os “okupas” das almas que não lhes pertencem – uma espécie moderna de expropriadores que só encontram oxigénio quando estão a olhar para (e pelos) outros.

Se há imitadores, qual é o problema? São os zelosos síndicos que se constituem na posição de imitador? Se eles garantem que não, deixem a emulação de serem quem não são para os outros. Sem juízos de valor, sem agredir as fronteiras que os delimitam dos outros. Imitar alguém é uma adulteração do ser – é crime? É um juízo que fica a cargo de quem passa pelo processo de transfiguração interna: não deve ser fácil reconhecer que é melhor tentar ser uma cópia de alguém do que continuar a ser a imprestável personagem que assim se auto-desconsidera. 

E a alguém é dado ser purista? Se não fôssemos sensíveis aos outros, seríamos acusados de misantropia, ou pelo menos de um ensimesmar que depressa andaria nas fronteiras do patológico. Se somos gregários e ficamos expostos aos outros, quem pode evitar imitar, por pouco ou muito que seja, os outros que adejam à nossa volta?

Os metódicos observadores das desandanças das outras almas são os mostruários de uma pureza digna de dizerem, de si mesmos, autênticas denominações de origem protegida. Ah!, vassalos de uma pureza que tem tanto de inadiável como de quimérica.

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