11.10.23

Se não a advertência

Blur, “Trimm Trabb”, in https://www.youtube.com/watch?v=RPBje1VIVc4


“(...) atravessavas a rua com duas mãos de alegria”. 

Paulo José Miranda, in “Perder a melodia”.

Era de entardeceres que falávamos, ou de matéria sensível para almas à contraluz, ou apenas sobre o insólito que imediatamente o deixava de ser assim que inventariado. Congeminavam-se as veias contra os contratempos que prosperavam nos dorsos de vultos avulsos. As malhas que teciam conspirações eram comparadas com a podridão que ascetas da misantropia não cessavam de derramar. Se não fosse pelas advertências, éramos reféns de uma vida trespassada pela frugalidade. 

Mas queríamos uma vida com as cores embebidas no salitre válido, queríamo-la devolvida a um magma heurístico, como se precisássemos de arrotear a lava hirsuta deixada para trás pelo tempo deserdado. Queríamos vida com o aroma pretérito da maresia, só para saber idóneos os mares vindouros. Se fosse preciso, emigrávamos – era como uma mnemónica que arrematava um necessário porto de abrigo, para o caso do exílio se ajuramentar contra a lógica do precipício. “Não estamos contentes”: esse era um lugar-comum em que muitos eram versados contra o princípio geral da indiferença de outros e de uma certa bulimia social de outros ainda. E nós, ali pelo meio, autores de uma meação sardónica, queríamos fugir das advertências. Eram os “mas” consecutivos que traziam uma safra infecunda, um chão cheio de nada vivo, rochas que nem para paisagem serviam.

Se fugíssemos chamavam-nos covardes. Mas que importa, se o que dizemos não é pranto dos juízos dos outros, se não confiamos no seu mau juízo? Se fugíssemos, estávamos à mercê da adstringência moral dos que trazem ao peito a sanha dos julgamentos que são válidos desde que não sejam virados para o espelho que os confronta. Conferimos a advertência, devidamente sopesada na indiferença de quem tanto vale como um zero soberbo. 

Nas mãos nossas, o rosário onde se aloja o mantimento. Chamamos os nomes que se sobrepõem no tabuleiro onde temos ainda algumas peças à nossa mercê. Não são todas – algumas delas foram sacrificadas, umas propositadamente, outras por acidentes imprevistos, outras, ainda, por lucidez ausente. As peças que estão em sobra desfiliam as advertências que se jogam como granadas prestes a estourar. Escondemo-nos do medo, dos vultos seráficos que povoam esse medo, a geografia de que não sabemos paradeiro. 

E mergulhamos as mãos nessa avenida, onde só nós sabemos estar escondido o manual da alegria.

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