Estava derruída, a paciência, que já enjoavam os mandamentos que confessam a desalma do estabelecido. Antes que fossem escombros, antepunha-se a hipótese do exílio – um exílio que não era territorial. Um fingimento absoluto, carta tirada aos trunfos para ser jogada num movimento contrário ao da maré. Quiseram chamar-lhe vanguarda.
Para estarem na vanguarda nem era preciso contestar burocracias: a adesão era espontânea, só com uma declaração, que tinha de ser validada por outros. Nem era preciso verbalizar a adesão à vanguarda. Não se estranhava que fosse difícil a empreitada de inventariar os que protestavam a pertença à vanguarda.
A ablação voluntária não refreava o entusiasmo por já não pertencerem à turba indistinta que navegava num dicionário permanente de lugares-comuns. Era o direito à diferença, tão democrático – tão animador. Os da vanguarda disputavam os costumes e as regras dos outros. Não os seguiam. Contestavam-nos em direto, como se se tivessem abatido os holofotes sobre a contestação e a multidão restante prestasse atenção a esses protestos (que depressa escarneciam, deles dizendo serem pueris).
Na vanguarda, a pertença era versátil. O denominador comum era a rejeição dos postulados colados a quem se afirma desta pertença: constituem o cimento sem o qual a comunidade se estilhaça, abrindo rombos na parede por onde podem entrar influências turbulentas. Mas havia quem só soubesse que não se revê no caudal preponderante. Muitos asilavam-se em coutadas de vanguarda por dissidência explícita dos censores habituais. A vanguarda era uma casa aberta. Queria ser a sede de todos os que saem debaixo da asa da normalidade.
Da casa da vanguarda, secretamente alojada numa taberna rural, ecoava um rumorejo que intuía as dissemelhanças com as preces que corriam a habitualidade. Nela habitava uma amostra plural, mesmo que o seu número não se comparasse com o que engrossa as hostes dos habituados à habitualidade. Na casa da vanguarda não se hostilizavam as diferentes sensibilidades. Por maiores que fossem as diferenças, todos falavam com todos. O que os opunha era menor do que a oposição ao mundo exterior de que se exilaram sob os auspícios da casa da vanguarda.
Só havia um tabu na taberna da vanguarda: não aceitavam hipostasiar sobre o alargar das fileiras e de como a noção de vanguarda podia esvaziar. Não aceitavam que o seu movimento se transformasse num novo sentir maioritário. Juraram que se esse acaso se desse, seriam os primeiros a lutar contra a força interna que quisesse adulterar o sentido de vanguarda. Nem que fosse precioso um cisma para convocar uma vanguarda por dentro da vanguarda corrompida, ou um palimpsesto de vanguardas sem determinação dos que são genuínos (admitindo a sua pluralidade).
Os que amesendavam numa taberna da vanguarda não conseguiam extinguir uma perplexidade: não sabiam se a vanguarda emergente violava os termos da vanguarda original. A singular igualdade de todos impedia, mas ao mesmo tempo favorecia, estes irredentismos.
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