24.10.23

Improbabilidade (short stories #443)

The Breeders ft. J. Mascis, “Divine Mascis”, in https://www.youtube.com/watch?v=XbTHcc01dL8

Era preciso tirar a venda que impedia a inauguração do dia. Juntar ao magma promitente um esteio, fundacional, como se nos convencessem que a paisagem parte das nossas mãos. Não dizíamos “parte das nossas mãos” como se fosse critério de pertença: a paisagem era esculpida por nós, seus tutores avulsos. Não sabíamos por que cais fundeavam as almas despojadas. Se não fosse pela tabela das marés, a maresia ausentava-se de sinónimos e o exílio era o destino pressentido. Não era algo que nos intimidasse. Do que sabíamos das pertenças, não havia muito por onde apaziguar veias tardias. Em vez disso, fundeávamos nas imediações da noite à espera que o sono consumisse a lucidez. Depois, davam-nos uma viagem. Por dentro de uma hibernação à prova de sentidos. De manhã, pouco podíamos dizer dos sonhos. É quando saímos de quem somos à procura de paradeiros sem lugar, apenas uma medida secreta dos povoamentos que se despenham na rarefação de gente; continuamos a ser quem somos. É um paradoxo que não levanta consumições: as incógnitas são lançadas ao solo e não esperamos que delas fruam respostas. Este é o nosso cabimento. Cúmplices de uma gramática singular, a gramática que transforma silêncios em estrofes lapidares. Contamos por metáforas os sentidos embebidos numa proteção do espaço. Sem contarmos, as fronteiras passaram a ser importantes, outra vez. Um arco-íris matinal despenteia o xisto enamorado: é o tapete que os olhos precisavam, extáticos com os socalcos que pareciam as diferentes páginas que irrompiam em anamnese. Combinamos os sortilégios que íamos fabricar. Combinamos a mudez, porque o silêncio fala em nome das palavras milhares. Sabemos que somos magos. As esculturas não precisam de tempo. As palavras agigantam-se na bandeira escondida, bebem inspiração numa gramática que ganha sangue novo. Se não fossem os medos, seríamos menores.

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