3.10.23

Como desaprender a arrumar gavetas

Memorials, “Sportswear Couture”, in https://www.youtube.com/watch?v=0jZEQT55lYg

O penteado rebelde despenhava-se nas vírgulas escondidas (as pessoas tinham a mania de deitar vírgulas fora do sítio). Agora, até havia cursos para as pessoas aprenderem a arrumar a roupa. Um dia destes, inventam cursos para aprender cursos, já que aprender turco é tão difícil.

Em vez disso, apanharam o autocarro para a praia. Queriam sentir a maresia. Viram, numa daquelas modernas aplicações de telemóvel que informam sobre tudo e mais alguma coisa, que as condições estavam propícias à maresia. Quando chegaram, foram desenganados. Atiram a aplicação do telemóvel para o lixo. Nem deram a oportunidade de defender a sua causa. Poderiam aprender que as condições mudaram entre o sair de casa e a chegada do autocarro ao litoral. O tempo não é uma condição estática.

Já que estavam em frente ao mar – pensou ele – podiam olhar para o horizonte como quem pede inspiração para um poema. É um mito infundamentado. Não havendo cursos para decifrar a quimera que se esconde atrás do horizonte (o horizonte é tão sedutor para um exército de enamorados), podiam concorrer a um curso de escrita criativa. Hoje nem é preciso saber escrever – o “saber escrever” tornou-se tão maleável que se defende, até na academia, que todos escrevem bem, até aqueles que têm um superavit de erros ortográficos e os outros que se entaramelam na gramática e mais ainda na sintaxe. A proposta do entardecer podia ser esta estrofe: “fecha-se o punho no avesso do sangue, tudo refém de um ponto e vírgula”. O resto do poema ficaria para outras núpcias. Ou então, aquele seria o poema.

No dia seguinte, bateram à porta das ideias. Era oficial: o dia estava a jeito da criatividade, é como naqueles dias de lua grávida em que os lobos, imbatíveis, vencem a demais fauna. Pediu ajuda para arrumar as gavetas. Deviam estar desarrumadas. Confirmou o contrário. Se fosse doutora das almas, talvez dissesse que tanta harmonia era patológica. Merecia o prémio Nobel da arrumação. Ficou surpresa. Ele parecia-lhe anárquico, intensamente desorganizado, incapaz de se reger por um interno fio de prumo. 

Ele insistiu: “preciso que me ajudes. A desaprender a arrumar as gavetas. Quero que elas não sejam o exílio do meu estado estrutural de caos sem rédea. Ou então, a desorganização que deixo à mostra é o refúgio da compulsão que me impõe toda esta meticulosidade. Preciso que me libertes de mim. Que desapertes o arnês que limita a liberdade. Sozinho, não o consigo. Deixo-me à prova perante ti. E ponho-te à prova: digo-te, à partida, que não sou fácil de desaparafusar.”

Ela passou a ensinar como desaprender a arrumar gavetas. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, o índice de felicidade atingiu níveis inesperados, nunca sentidos dantes. Ela já estava na calha para uma comenda presidencial no dia das comendas presidenciais. 

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