23.10.23

Falésia

Kate Bush, “Cloudbusting” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=mtaTO9NTX34

Os objetos tornavam-se miragens, a sede saciada com o amparo de estrofes continuadas com as bocas famintas. O chão era o melhor seguro de vida. E se o chão se ausentasse: como se comportariam os passos, seriam devotos na errância em vez de tributários do medo?

As questões perfilavam-se na tela arrombada pelos espiões furtivos. Não queriam que o palco fosse aveludado; queriam-no cheio de espinhos, pontiagudamente entrando pelas solas dos sapatos, como se as pessoas fossem forçadas a atravessar um caminho de pedras abraseadas sob o convencimento de um guru psicologicamente arbitrário. Quando dessem conta, sabiam que o precipício não está na ausência de chão, mas num chão intencionalmente adulterado só para alguém conseguir colonizar almas desprevenidas.

Era uma questão de crer – ou de querer. Por diferentes que fossem as avenidas percorridas, elas desaguavam no mesmo e que crer e querer eram sinónimos. Os termos da intendência sobrepunham-se à lucidez. Pairavam outra vez uns espíritos disfarçados de querubins só para arrematar a lucidez. As pessoas ficavam sitiadas pela errância: não sabiam onde estavam e não procuravam saber do paradeiro. Preferiam o esconderijo, como se descobrissem (ou intuíssem descobrir) que precisavam de uma camada alternativa de mundo para tirarem a prova dos nove à utopia. Acreditavam (ou queriam acreditar) que a realidade era pungente, que uma forma de exílio se impunha: um refúgio para serem o que a vida mundana lhes negava.

Deviam-no fazer antes que chegassem à falésia. Conheciam-na. O despenhamento era medonho. Estremeciam só de se aproximarem do limiar, o chão desaparecia e entreviam o emparedado precipício – a morada certa da morte (soletrando-a, sílaba a sílaba: a mo-ra-da cer-ta da mor-te). Sabiam como desviar o pensamento do apocalipse: aquele era um lugar idílico, apesar do pressentimento da morte. Todo o mar que se levantava contra o desfiladeiro entrava nas veias como um bálsamo, aprisionando o medo num precipício. As paisagens idílicas são os contrafortes que repatriam o espectro da morte. 

A falésia não era uma condenação. Era um castelo que aferroava os dias vindouros. 

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