25.10.23

As palavras baratas

The Comet Is Coming ft. Kate Tempest, “Blood of the Past”, in https://www.youtube.com/watch?v=G1J8R3rS2k0

Às tantas, há palavras que se libertaram do jugo dos dicionários. Palavras reinventadas no seu sentido por tutores que se autoinvestem nessa condição fundacional. Habitualmente, pessoas que se agarram à liberdade para serem coercivos em relação à liberdade dos outros – mas não interessa, que eles jogam a sua batuta genesíaca contra os que se ousem opor; se não, como entender que forcem a re-significação de palavras (pior: de conceitos) e os imponham aos demais por decreto divino, sob pena de os que ousam dissidir logo serem enxotados? E se, dando corda ao movimento, fôssemos ao baú da (má) História resgatar a identidade de Torquemada para retratar os apóstolos da nova língua?

Hoje, tudo o que é mau é fascismo. O fascismo deixou de ser um conceito operativo (da História, da Ciência Política) e passou a ser a pior forma de abjurar adversários ou de os colocar contra as cordas, no limite do ad hominem. Vulgarizou-se como ofensa, delimitando quem se situa numa extremidade inabitável da barricada. Da esquerda, já era hábito sedimentado: logo à sua direita, no limite do concubinato, levam com o opróbrio fascista quando escorregam para heresias. Agora também há próceres à direita que não enjeitam o qualificativo (colando-o aos radicais islâmicos, por exemplo), nem que seja para ferir a sensibilidade dos habituais apoiantes de palestinos – nem que assim o sejam para pisar os calos do ocidente. Quase se podia generalizar uma lei, por dedução: tens alguém nos antípodas, cola-lhe o rótulo de fascista até que ele se abespinhe e te encha de razão pela violência da sua resposta. Pelo caminho, mandas para o lixo da História e da Ciência Política conceitos que tinham sido assimilados com o apoio do método cientifico. 

Hoje, se não estás pela causa ambientalista és, por inação, perpetrador de genocídio. Encurralam-te no hediondo capitalismo, acusam-te de serem cúmplice do capitalismo, mesmo que tu, pouco mais do que remediado, precises de um trabalho para subsistir e manter a família. Isso não interessa aos novos apóstolos do ambientalismo: devias ser fiel à causa mais politicamente correta, mesmo que isso te mande, juntamente com o agregado familiar, para debaixo da ponte. Devias ser sensível à castração das legítimas aspirações dos teus filhos e dos teus netos enquanto passas ao lado da emergência ambiental e continuas a “colaborar” com os capitalistas que exaurem o mundo e o desqualificam para quem vem depois de ti. Devias ter aprendido, dos princípios da lei, que o seu desconhecimento não legitima o desmazelo – aqui com extensão contextual, para te ensinarem que não mereces perdão se não te informares sobre as boas práticas que não lesam o deus-sagrado-ambiente e não militares num combativo ativismo que reponha a justiça (pela menos a idealizada).

Apanhados no restolho de um ativismo exacerbado, algumas palavras sujeitam-se a um processo de banalização que é ofensivo para quem delas foi vítima no processo histórico. Invocar o genocídio, enxertando-o no oportunismo ambientalista, é ultrajante para os que morreram aos pés de quem intencionalmente o cometeu. Que seria dado a fazer aos apóstolos do ambientalismo se pusessem a mão no poder? Levavam os déspotas do capitalismo ao Tribunal de Haia?

Há outra categoria de peritos que sofrem uma ostracização em curso – os linguistas e filólogos, que emolduraram, com recurso aos cânones, significados de palavras e agora assistem, incrédulos e impotentes, à sua adulteração pelos feitores das novas e imperativas verdades. O mesmo se diga de historiadores e politólogos que acordaram para a banalização de conceitos sem terem sido consultados, eles que terão deixado de perceber da poda. Mas que ninguém se oponha aos reinventores da linguagem, para não serem sujeito a lapidação pública de quem se expõe ao pecado capital: opor-se a suas sumidades e à sua propensão para a intolerância. 

Ou então, submetemo-los a um processo que repristina a justiça (que não é a sua): deixamo-los a falar sozinhos, porque falamos idiomas diferentes, ou falamos o mesmo idioma mas com o recurso a étimos que não correspondem ao significado atribuído por dicionários. Se ficarem a falar sozinhos, só se incomodam a si mesmos. Deixamo-los adulterar as palavras que quiserem e como quiserem; nós, com falta de sintonia pelo novo cânone, não os ouvimos porque não conseguimos entendê-los. E esta poluição sonora, entretanto removida, não é de menosprezar.   

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