19.10.23

As casas que mudam

Ólafur Arnalds, “The Invisible Front”, in https://www.youtube.com/watch?v=9yfL28dhedc

As casas não mudam – diz-se. São como as grandes árvores centrípetas, esteios de alguém, uma identidade entrecruzada nos poros das paredes e no travejamento do telhado, deslaçando o sangue embaciado. 

As casas não mudam, quem muda é quem as habita. Uma casa é o chão diferente que alimenta uma alma. As pessoas mudam de casa porque precisam, ora porque querem. Ora porque querem por precisarem. As casas já lá estão, invariáveis, determinadas. São as casas que começam por mudar quem as habita a partir do dia inaugural. Emprestam um sangue mudado, como se fosse precisa a mudança que em seu céu se acolheu. As casas não ficam à mercê dos moradores. Ainda que o novo habitante tenha a pretensão de rasgar o interior da casa de cima a baixo, não é a re-decoração que a adultera. A casa é muito mais do que esses lampejos. É uma identidade inteira, estrutural, com raízes fundas no futuro. As raízes a que o inquilino não é indiferente.

As casas que mudam passam pelo tempo com a indiferença às tempestades, até aos avales de quem foi seu intérprete interior. Um húmus renovador, à espera do novo morador para que se embeba na pele dura da casa, para combinar uma transfiguração: a casa é que os muda.

A casa que muda é o santuário que desemudece as pessoas que estão por sua conta. À medida de uma tutela, estilhaçando precipícios que foram herdados. A casa, centrípeta como a árvore protagonista, é uma ilha no meio do resto, mesmo que a geografia desminta a insularidade. Passa a ser homónima do seu habitante e este espera que a casa o mude. 

Não tem serventia mudar de casa se a casa não for a muda que a pessoa pressente. As casas que não mudam, não chegam a ser apeadeiros. Deixam de ser o magma demandado para se esvaziarem num conglomerado anódino, um cosmos igual pelas latitudes fora, de cortinas estilhaçadas que deixam à mostra, em convulsão voyeurista, as pessoas descarnadas. Essas não são casas que mudam. São as casas que reproduzem a formatada semelhança de quase todos.

A casa que muda é um bálsamo, as cordas avivadas de violinos cantantes que desmentem pesadelos e deixam alguém escondido de assombrações. A casa que muda é a muda arrematada.

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