Partiam enganados para as batalhadas terçadas pelos maiores covardes. Não sabiam. Ou fingiam que não sabiam: a coragem rimava com valores exaltados e ninguém podia virar a cara à defesa de todos, se fosse preciso pegar em armas e morrer no campo da batalha espezinhado como se fosse um percevejo miserável que o entejo obriga a matar. Partiam, uns sem olhar para a família que deixavam no cais, desfeita em prantos a encomendar o funeral a destempo (ou em adivinhação do tempo). Outros, que não queriam dar parte de fraco, erguiam o olhar por trás das costas: tinham um terrível certeza de que era a última vez que viam a família que olhava para eles com uma comiseração de si mesmos.
Os que se desterravam voluntariamente eram abjurados. Tidos como os maiores covardes, não dando corpo à obrigação de defender a terra contra a invasão, fugindo da solidariedade com todos os outros que partiam para regressarem numa sepultura barata, ou como soldados anónimos (o que ainda era pior). Que ninguém dissesse destes errantes que eram os mais judiciosos. Não podia ser: eles eram párias, devia ser-lhes retirada a nacionalidade para se tornarem apátridas, aquele chão que ninguém quer nem para seus pés pisarem.
As guerras sempre foram desiguais. Os maiores covardes, refugiados nos quarteis, a desenharem a tática a regra e esquadro, encomendando à morte dois ou três batalhões com a frieza de quem não sabe que joga com vidas. Sem saberem, esses medalhados, que as vidas são todas, por igual, importantes. A desigualdade das guerras que mais importa não é a desigualdade de meios e de força entre os beligerantes: é a desigualdade entre quem manda para o campo de batalha corpos inocentes para serem sacrificados e os que vão, mandados, sem contestarem ordens, rebanhamente.
A objeção de consciência é dos maiores privilégios da civilização. Cada um pode ajuizar se a dignidade pessoal está em causa ao obedecer a ordens lunáticas de um punhado de generais. A objeção de consciência corresponde à emancipação de um povo. Podem os seus constituintes não saber que a objeção de consciência está a meia dúzia de palavras (e de um formulário qualquer) e ser pouco usada. O passa a palavra pode liquidar as barreiras à comunicação e ao conhecimento. Para a objeção de consciência se tornar norma.
Talvez não seja por acaso: a objeção da consciência, um ónus da civilidade que os mandantes tiveram de aceitar, corresponde à menor assiduidade das guerras. Sem corpos não se alimentam exércitos. A menos que a modernidade mostre, para desdém dos que se horrorizam com os “teatros de guerra”, que agora são aviões não tripulados que fazem as despesas dos belicismos hormonais. Porém, por trás de um tripulante remoto destas máquinas há uma mente que se pode sujeitar à objeção de consciência.
Talvez se um dia acordássemos e nos impusemos resolutamente objetores de consciência, os generais ficassem sozinhos a brincar às guerras, e elas começassem a ser extintas. Seria uma daquelas extinções a bem da espécie – um extinção agradavelmente antropológica.
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