6.10.23

Olho nu

Indignu, “A noturna”, in https://www.youtube.com/watch?v=-FzLBAitC50

Tiraram os véus que embaciavam o dia. O restolho outonal ainda não existia – um perito aconselhou que esqueçamos o Outono, tendemos para tudo se resumir a duas estações e o Outono não é uma delas. Podia-se dizer que daí não vinha dano ao mundo: as folhas caducas que atapetam o chão ferem o olhar e o ruído estremunhado dos pés quando calcam a folhagem decadente não é melífluo. Os que contemplam o Outono como uma tentativa de belo discordam. 

Ninguém proteste contra a nudez do olhar. Descomprometido, sem ser amurado, sem sacerdotes que o insinuem pela meação, aprendendo-o por ser a levitação máxima da liberdade. É através do olho nu que se consegue decantar as impurezas que adulteram o que seja paisagem. Não são as penumbras que embaraçam a nitidez: a penumbra faz parte da constelação de sombras que se abate sobre as coisas e que as compõe. Às vezes, é a penumbra que desembaraça um sentido poético de outro modo ocultado.

O olhar adestrado pelas convenções é um olhar sujeito a liberdade condicional. Contrafeito por filtros ditados pelo arbítrio de mediadores não benévolos. Eles limitam-se à usurpação dos outros só para ostentarem esse poder em público e serem venerados. O olho nu procura essa nudez que se descompromete de embaraços e de grilhetas. Arremete contra as demãos que inventariam uma diferente forma de as coisas aparecerem sob o jugo do olhar. Elas são o seu próprio jugo. Jogam-se em sucessivas camadas que rebentam por dentro do corpo, apanhando-o à falsa fé.

É preciso ter o olhar nu na mira que faz observação ao que seja limítrofe. É o olhar nu que extingue, e logo à boca de cena, os mastins que se aproveitam da candura indiferente das pessoas para lhes ditarem como é o olhar e como devem olhar. Instruídos à partida, passam a ter um olhar contingente. Abraçado à vontade dos instrutores. Fabricado, artificial. Aprendendo a ser o que não seriam se ao olhar fosse devolvida a nudez original. Ou a nudez que o olhar quisesse que fosse sua.

Sem comentários: