18.10.23

A maldade não existe

PJ Harvey & Johnny Marr, “C’mon Billy” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=OlVAu4Kgg2Y

Mote: filme “A maldade não existe”, de Ryûsuke Hamaguchi.

Um convite deletério: vamos atravessar um corredor propositadamente mantido nas trevas, com a confiança de que na extremidade se encontra um simulacro de oásis. É preciso um oásis para situar a ação e para delimitar as bainhas de um exercício de digestão do mundo na sua nudez complexada.

No fim do corredor – entretanto, saber-se-ia que não era linear: é um labirinto, com muitas e retorcidas curvas –, o oásis onde se aprende que não há pessoas malvadas. Por mais que a maldade gratuita seja autenticada possivelmente à razão de vários atos por minuto, os atos de maldade emancipam-se de quem os comete. Mesmo os que reincidem na maldade e sejam tidos como malvados aparentemente incorrigíveis, a propensão para a maldade é mantida por atos e gestos que não têm correspondência com um quadro mental assente na razão.

(Admito que o leitor pode mergulhar na hermenêutica, recorrendo ao vasto catálogo filosófico, para suscitar perguntas sobre a ontologia da razão. Dou esse salto metodológico, propositadamente: não inquiro os meandros da razão, nem a submeto a um criterioso teste que o valide como prova de vida; assumo a sua existência e admito que possa conter diferentes entendimentos para diferentes pessoas.)

A maldade é um desvio. Mesmo nos casos em que uma investigação meticulosa arremate provas da sua autenticidade. Um instante, ou um demorado conjunto de instantes, ateiam a maldade. Para bem da sanidade antropológica, admito uma hipótese: assim que a maldade é consumada, o agente propõe-se ao arrependimento. Até nos casos de reincidência: aí repetem-se os momentos de arrependimento e a procura pela redenção (ou não – a sua ausência não prejudica o arrependimento que emerge com a espontaneidade que a vontade não consegue domar).

A maldade é a intimidação que adultera a vontade dos agentes atropelados pela sedução da maldade. Ao saberem que estão a congeminar a maldade, sabem que são atirados para o canto onde se aloja o numeroso exército de maldosos. Não se acredite que a sua escala de valores (sem conotações filosóficas, outra vez) ignora a contundência da maldade e as dores, imediatas ou apenas mediatas, que a maldade deixará para memória futura. Ou então, são conduzidos por uma lógica de números: identificam a elevada frequência de maldades, apreciam a inimputabilidade decorrente e situam-se entre a maioria para não serem vítimas de maldade.

Mas a maldade só tem vítimas: aquelas que são levadas na enxurrada da maldade; e os que a cometem, aprisionados no remorso, cientes que o futuro será um farol ateado por novos mandamentos de maldade, sitiados por uma vontade, que não dominam, de reiterar a maldade.

(Algum dia teria de exibir otimismo antropológico. Voltei ao início do texto e, no seu final, fiquei sem perceber se o mesmo se limitou a um exercício de cinismo ou se encenou um otimismo antropológico que é apenas o fingimento da sua antítese.)

Sem comentários: