É só uma questão metodológica: é preferível saber primeiro das boas notícias e deixar para depois as más notícias? Ou o contrário?
(E como se pode saber, antes de sobre elas saber, se as notícias são boas ou más?)
O critério depende da forma de ser? Se somos propensos ao otimismo, que venham primeiro as más notícias para ficarmos a celebrar as boas que sobram para o fim das revelações. Se temos tendência para o pessimismo, pedimos que as boas notícias precedam as más.
Se ser otimista é o lema, gostamos que a última impressão seja das coisas boas. Corremos o risco de fingir que as más notícias não foram contadas; ou, inebriados com as celebrações imputadas às boas notícias, vamos adiando a exigência de lidar com as más notícias e tendemos a deixá-las para núpcias tardias, ou até a deixá-las desertas, como se não tivessem acontecido.
Se propendemos para o pessimismo, queremos um laivo de conforto garantido pelas boas notícias que são contadas antes de as más notícias desabarem sobre nós. Seremos arrastados pelos dias, arqueados pelo peso excessivo das más notícias. Confundimo-nos com elas e perdemos a bússola que habilita a encarar os pedaços desagradáveis que enxameiam o mundo.
E se uma só boa notícia pesar mais do que uma dúzia de más notícias, como definimos a prioridade? Todas as más notícias de uma vez, com o devido inventário para memória futura ou para simples conhecimento, impacientes pela divulgação da boa notícia que nos fará exultar? Ou decidimos intervalar a procissão de más notícias com a boa notícia prometida, para mear o ónus com o regozijo? Se metermos a boa notícia pelo meio, não corremos o risco de ela ser asfixiada pelas más notícias que a cercam por todos os lados?
Os critérios só podem ser avulsos. Variam de pessoa para pessoa e, para a mesma pessoa, pelo tempo em que o desafio é levantado e as circunstâncias que são o contexto. Nos dias em que não há notícias, isso pode ser uma boa notícia se formos estruturalmente pessimistas: o dia saldar-se-á pela ausência de más notícias, o que já é uma boa notícia. Pode ser uma má notícia se formos exigentes e o olhar estiver virado para um horizonte despido de espectros: nesse caso, a ressaca da ausência de boas notícias é como se uma má notícia se abatesse sobre o dia; estamos viciados em boas notícias, o que é uma má notícia.
Cage the Elephant, “Social Cues” (live at World Café), in https://www.youtube.com/watch?v=v6M224twW4s
(Crónica frívola, ao jeito daquele cronista do Expresso que é catedrático em banalidades e tirou a especialidade em assuntos mundanos)
E se uma mulher que tem convivência íntima com um homem dele exigir a rapadura completa das pilosidades corporais, sob pena de uma greve de sexo ou afim – ou, numa situação limite, sob pena de cessar a convivência íntima: é uma intolerável intromissão na liberdade do homem, ou à mulher deve ser atendida a pretensão para não a indispor perante tão abundante camada de pelos?
Poderia um relativista começar por relativizar os pressupostos. Diria, o relativista: depende da camada de pilosidades detida pelo homem em causa, pois não será o mesmo sacrifício lidar com abundante cobertura capilar de uma ponta à outra, ou com um homem que é moderado no usufruto dos pelos que apenas disfarçam partes da nudez. Talvez o relativista continuasse a relativizar, advertindo que será difícil estabelecer leis gerais sobre o assunto, pois as mulheres podem ter diferentes padrões quanto à tolerância da cobertura capilar dos corpos dos seus parceiros.
(O(a) leitor(a) terá reparado que o relativista se esqueceu de continuar na senda da relativização ao pressupor uma relação heterossexual, o que pode representar uma fragilidade do seu raciocínio. Se a relação for homossexual, todas as questões colocadas por este assunto candente se aplicam, como diriam os juristas, mutatis mutandis.)
Este é um dilema que convoca a Filosofia. Ou, se pedirmos de empréstimo conceitos ao Direito, é uma questão de extremas. Os limites de duas liberdades pessoais entram em choque frontal se houver uma incompatibilidade sobre a estética capilar do corpo do homem. A mulher invoca o desconforto ao desbastar abundantes pilosidades. Dirá que lhe causa desprazer a intimidade com um homem que seja desta laia, a menos que ele aceite reservar lugar num gabinete de estética e proceder à periódica depilação (ou a sistemática e mais duradoura depilação, se quiser matar o assunto pela raiz e fazer a vontade à parceira).
O homem pode recusar o rogo da parceira se ajuizar que há uma adulteração da morfologia e que a insistência (ou a simples invocação singular, se tiver menos paciência) em se livrar da cobertura capilar que afeia o corpo se intromete na sua esfera individual. Se for ativista das causas em nome próprio, ou se apenas quiser disfarçar a preguiça para desmatar pelos abundantes, virará o jogo do avesso. Socorrer-se-á do paradigma da igualdade de géneros, em parceria com outro clamor retirado do contemporaneamente aceitável: e a seu favor reivindicará a liberdade de expressão corporal para travar o assédio da sua parceira.
Se a divergência for levada aos limites, e dela resultarem dois teimosos cada vez mais distantes um do outro, a convivência será rescindida por assuntos de somenos importância (concordarão muitos, mas não os envolvidos no litígio). Os dois interesses não são sopesados. Se a mulher ajuizar que o seu desprazer pesa mais do que a liberdade corporal do homem, e se este considerar inaceitável a insistência, a resolução das coutadas pode trazer o afastamento entre os parceiros – que deixarão de o ser. Mas há outro ângulo de análise: a obstinação do homem pode ser entendida como uma intrusão no bem-estar da mulher, que assim legitimará a recusa em manter a intimidade entre ambos. O Estado socialista devia nomear um(a) Provedor(a) para estas demandas.
A culpa é da natureza, que dotou alguns homens de uma cobertura capilar que os aproxima dos seus antecessores biológicos. Se um homem destes tiver um choque frontal com uma mulher sensível à extravagância de pilosidades corporais, não se lhe afigura bom fado. Como rematam os jurisconsultos, na sua edificante missão da interpretação de litígios, “salvo melhor opinião”.
Björk, “Emotional Landscapes”, in https://www.youtube.com/watch?v=loB0kmz_0MM
Um feixe de luzes indizíveis, a tocha que ateia a combustão por dentro, a combustão que não se vê. Digo-a. Todo um magma efervescente, a subir pelas veias a pedir que o sono seja apeado. A água pede à inquietação estrutural que remoce. Pois a anemia depressa se confunde com letargia, deixando uma terrível anestesia estilhaçada sobre a pauta onde se movem os dedos açorados. As palavras emprestam-se ao silêncio. A combustão interna desassossega a maré, que se agiganta nos garfos terçados numa maré-viva. Sussurro os segredos que eriçam os poros. O fogo invisível coloniza os sentidos. A pele desemudece, como se as transgressões deixassem de ser párias. Não pertencem ao domínio público; é por isso que não são párias nem são transgressões. Podemos hasteá-las ao nível de transgressão, se não nos importarmos de fingir que evocamos o mundo que habita no avesso das paredes. Construímos os sonhos com os nossos dedos e emprestámos as bocas para que não fique uma sede por embargar. Desembaraçamos os modos, a partida que se move no fio do horizonte que descobrimos nos interstícios do sono. As muralhas não se escondem nos passaportes sem cor esgrimidos em vez de disfarces ou de meras convenções. Ironizamos com os profetas que desfilam em representação do arrivismo; não sabemos nada deles, a não ser a ostentação. Inventamos um enredo que não é sobre eles. Combinamos os segredos que se oferecem à cordilheira que apalavramos. Outros dormem e nós ateamos o rastilho que não acende uma chama. Não precisamos de provas. Somos a expressão viva do lado final desse rastilho. Subimos às torres que coroam os silêncios ardendo através dos poros. Vemos o longe que deixámos para trás. O contrário de uma devastação. Somos os corpos que se tatuam um no outro. A candeia de um mundo feito por nós.
Sleaford Mods, “West End Girls”, in https://www.youtube.com/watch?v=0nTTGw2tXWU
O partido de Geert Wilders venceu as eleições legislativas dos Países Baixos. Duplicou o número de deputados. Não é certo que Wilders consiga liderar o próximo governo: elegeu 35 deputados, mas a maioria alcança-se com 76. A pulverização partidária (dez partidos com assento parlamentar) obriga a coligações entre vários partidos, numa filigrana complexa. À data em que escrevo, Wilders quer ser primeiro-ministro mas parece difícil encontrar parceiros.
Esta eleição serve para avivar interrogações sobre a cavalgada de políticos populistas, sobretudo à direita (mas também à esquerda), e como o seu avanço eleitoral em vários países é uma ameaça existencial à democracia. A vitória de Wilders é apenas o mais recente episódio. O futuro dirá se noutros países partidos de idêntica linhagem conseguirão ser os mais votados.
O consenso interno estabelecido não coloca os partidos extremistas de direita e de esquerda em paridade quando se antecipam as ameaças que se podem abater sobre a democracia. Não vou discutir agora a equivalência entre formações partidárias colocadas nas extremidades da paisagem política, até porque esse é um tabu em Portugal, porventura por ter sido um dos últimos países europeus a desembaraçar-se de uma ditadura de extrema-direita. E porque, para o caso em apreço, pouco importa.
O propósito deste texto é percebermos se a progressão eleitoral de partidos de extrema-direita pode hipotecar a democracia; e se, admitindo a sua matriz antidemocrática, a democracia deve tolerar esses partidos no concurso eleitoral, pressentindo que possam sepultar a democracia ao serem os mais votados.
O tratamento homogéneo destes partidos não é o critério correto. Banalizou-se a ideia de tratar todos por junto, como se fossem todos iguais. Existem diferenças entre eles, todavia. Se estivermos atentos aos programas políticos e às declarações dos seus dirigentes, percebemos que há partidos de extrema-direita que motivam mais medo do que outros. Os que sem demora sentenciam a condenação de todos esses partidos sem exceção podem argumentar que temos de desconfiar até daqueles que parecem mais próximos dos valores da democracia, porque ninguém garante que derivem para a negação da democracia se chegarem ao poder. Não vou alinhar nesse exercício de História do futuro. O exercício é arriscado e não é aceitável, porque parte de juízos de intenção que adivinham reações futuras de outrem. E o futuro continua a encerrar uma admirável incerteza.
Aqui vão as interrogações do momento: o que dizer daqueles partidos de extrema-direita que não se escondem em truques de retórica, os partidos que são manifestamente antidemocráticos? Se se posicionam contra a democracia, deve a democracia aceitá-los no sistema político e no jogo eleitoral? É legítimo excluí-los dos atos eleitorais com medo que possam conquistar mais votos, reconhecendo que o seu sucesso eleitoral pode determinar a exaustão da democracia? Os partidos que não escondem a vocação autoritária (ou até totalitária) devem ser admitidos no sistema político, se eles podem erodir a democracia desde o interior? Não será um exercício autofágico, pessoas livres e tolerantes aplicarem uma dose de tolerância (por minimalista que seja) aos que não participam dessa tolerância?
Estas interrogações lançam um desafio existencial à democracia. Não escondo o receio que estes partidos possam destruí-la a partir de dentro; no fundo, eles é que atiram um desafio existencial à democracia. Temo que o experimentalismo – esperar para ver como estes partidos se comportam quando e se assumirem responsabilidades governativas – possa causar uma doença irrecuperável que mate a democracia a partir do interior. Ao mesmo tempo, pergunto-me se um democrata pode excluir certos atores da democracia, mesmo que argumente que tem a certeza (e de que podemos ter certeza, afinal?) que esses atores se aprestam a minar os alicerces da democracia. Se a democracia, geneticamente tolerante, excluir da paisagem partidária, e do acesso a eleições, um partido que constitua uma ameaça à democracia, não é uma contradição de termos?
A contradição é insanável. Uma democracia que restringir o acesso de partidos extremistas a direitos enraizados no sistema político, contraria-se a si mesma. Uma democracia desta natureza corre o risco de fortalecer os que condena à clandestinidade. Aumentando o potencial de contestação, alimentando tumultos graves que desassossegam o tecido social. Agravando o risco de golpes que terminem violentamente com o regime democrático.
A estes argumentos junto outro: depois de admitir estes partidos no processo eleitoral, e depois de progressivamente terem vindo a conquistar mais eleitorado, interromper o direito de concorrerem a eleições, ou (mais drasticamente) ilegalizá-los, condena este eleitorado a uma divisão clandestina da sociedade. Esses eleitores são desautorizados nas suas escolhas, o que será tão mais grave quanto maior for a franja do eleitorado seduzido pela extrema-direita. Não há eleitores de primeira e de segunda, sendo inaceitável a arrogância intelectual de quem desdenha dos eleitores que votam na extrema-direita. Tornar estes eleitores párias não é próprio de quem reivindica um lugar cimeiro no exercício da tolerância. Sem contar com a probabilidade de esporear ânimos e exacerbar reações, tornando-se perigosamente vizinhos da violência.
As democracias vivem aprisionadas neste labirinto. Como democracias, não negam o direito de participação aos que não se regem pelos valores democráticos. À medida que o sucesso eleitoral destes partidos hasteia o temor de que a extrema-direita possa liquidar a democracia por dentro, levanta-se um clamor favorável à restrição de direitos políticos a esses partidos.
Duvido que uma democracia seja democrática se banir os radicais da dialética política típica da democracia. Arriscamos uma tamanha descapitalização da democracia? Temos a lucidez de perceber os efeitos contraproducentes: de como podemos, na defesa tão vigilante da democracia, contribuir involuntariamente para a sua degradação?
The Comet Is Coming, “Timewave Zero”, in https://www.youtube.com/watch?v=T5epgWNEdzQ
Uma poeira lisérgica levantou voo e, empurrada pelos ventos contrariamente ao habitual de Sul, aterrou no Ártico. Por proibição decretada pelo partido ecologista (no governo), as renas a sério deixaram de sair dos estábulos para cumprirem a função natalícia. O partido do governo ainda tentou proibir a tradição, mas recuou: até seus votantes se insurgiram contra a régua e o esquadro tão impecavelmente corretos dos ecologistas e logo a seguir uma startup propôs a substituição de renas de carne e osso por renas robotizadas. O desmantelamento do capitalismo apenas ficava adiado.
(A startup tinha adivinhado que os altamente esclarecidos do governo iam proibir os voos das renas durante todo o ano e começaram a fabricar renas robotizadas.)
Quando as poeiras lisérgicas assentaram no solo, uma súbita reação química fez desabrochar, a destempo, a flora local que já tinha hibernado à espera do Inverno. As renas robotizadas, entretanto reunidas em sindicato, não conseguiam aguentar o peso das armadura e dos circuitos integrados. Eram vítimas da poeira lisérgica. Algumas foram apanhadas de rabo para o ar a inalar flores surpreendentemente desabrochadas no dealbar do Inverno. Outras levantaram voo sem autorização da torre de controlo e da direção-geral dos corpos robotizadas, sendo ouvidas a anunciar que iam fazer uma residência artística nas Maurícias.
A direção-geral das atividades lúdicas, subdireção do Natal e de outras atividades lunáticas, perdeu o Norte (literalmente) e nacionalizou a lucidez – e nem notificou o comité central, para desespero dos costumes tirados a milímetro no estirador dos esclarecidos. As pessoas eram livres para a tresloucura, para dizerem poemas malditos (e para dizerem poemas mal ditos, pois viva a liberdade criativa!) para fumarem todo o tipo de tabaco e voltarem a comer rena (dantes de carne e osso), sendo autorizado o palitar de dentes no fim da refeição. Os fetiches foram readmitidos à circulação e até os velhinhos efetuavam pagamentos em cripto-moedas. Os jovens não se excitavam com nus. De dois em dois dias, desligava-se o aquecimento central e ninguém tinha saudades do sexo, tanta a roupa em que se refugiavam.
A lotaria tinha como prémio uma estadia compulsiva com o vocalista dos National: as pessoas acreditavam que a melancolia não era uma conjura e podiam aprender a ser quem são se mergulhassem no fundo. As crianças, de repente, saltavam de meados de dezembro para três de janeiro. E de tanto janeirarem a desafio, nem se lembravam do natal. Os graúdos – um contingente já numeroso – silenciavam o agradecimento, não fossem os mais pequenos lembrar que se esqueceram do natal.
Todos andavam exultantes, um sorriso tão radioso como a antítese de horas solares que aquelas paragens (não) conheciam. No dia 24 de dezembro, à hora do jantar, não se comia rena nem ovas de esturjão e as garrafas do melhor vodca permaneciam escondidas em caves mentais. Todos suspendiam a respiração, uma demorada apneia para ver se apressavam o lançar de âncora no 26 de dezembro. Os posters do camarada Chávez, esse exemplo de democracia de elevada intensidade, tinham sido cobertos com posters de elfos nus. Já não havia suicídios há cinquenta e seis dias (com todas as desvantagens ecológicas associadas). O teatro virou-se do avesso: a audiência passou para o palco e os atores ficaram em casa, com medo.
Os habitantes locais inspiravam o ar frio do Inverno estabelecido, à saída do rápido mergulho nas águas gélidas do lago depois de quinze minutos de sauna, e diziam, em coro: “agora está tudo bem”.
Grant Lee Buffalo, “Fuzzy” (live on 2 Meter Sessions), in https://www.youtube.com/watch?v=-33KRkUnLk8
O velho passava temporadas parado à frente do mar. (Uma temporada do velho compreendia sensivelmente meia hora, por apanhado e mal medida.) Falava com o mar, mas não se lhe ouviam palavras entoadas. O velho perguntava ao mar se arrancou vidas para as suas profundezas nos dias em que se pusera tempestuoso. Perguntava, na sede insaciável de saber de outras vidas, se o mar era o procurador de segredos de marinheiros porque os marinheiros eram passageiros do mar.
O velho esperava por uma garrafa que guardasse um papiro bolorento. Imaginava-se a descer os degraus até ao areal remexido, calcando aqui e ali para desviar do restolho que o mar pós-tempestuoso legou ao areal, até empunhar a garrafa nas mãos. Imaginava-se a levantar a garrafa para a luz do sol a trespassar, para confirmar se trazia uma mensagem resguarda da ira do mar. O velho, com a madurez que a velhice contemplava, adivinhava o malogro: se houvesse um matemático a trabalhar as probabilidades estatísticas de um náufrago ou de um marinheiro nostálgico ter deixado um segredo à curadoria do mar, o perito descobriria uma reduzida probabilidade. O velho, à medida que estava mais velho, não conseguia curar a inclinação para o esmorecimento.
Ele, que nunca desistiu de sonhos, persistia. Avançava entre os detritos avençados pelo mar e empunhava a garrafa. Contrariando as probabilidades do matemático, a garrafa puída guardava um manuscrito. Como era de esperar, não foi ligeira a empreitada de desalfandegar a rolha da garrafa. A cortiça entumecida pela temporada (muito mais demorada do que a temporada do velho) requisitou a máxima força braçal para abrir a garrafa. O velho sentia que estava a arrancar a alma mais funda da garrafa ao meter os dedos que cabiam através do gargalo, à procura do papiro esquecido. Foi com dois dedos, como tenazes, que trouxe o papel para o exterior.
Agora que tinha ido ao osso da garrafa, o velho distraiu-se do resto e deixou-a cair. A garrafa estilhaçou-se em muitos e puidamente verdes pedaços de vidro ao atingir o areal, que ainda estava asfaltado pela firmeza da maré alta da véspera. O velho resmungou à medida que a mão trémula percorria o interior dos bolsos das calças e do casaco – e não era pelo despedaçar da garrafa, que já se tornara inútil. Não encontrava os óculos. Esqueceu-os em casa. Não capitulou. Desenrolou o manuscrito, o papel aridamente estaladiço, como se pudesse esfrangalhar em mil pedaços se fosse manuseado com um módico acima da gentileza. O papel escondia umas palavras escritas a tinta entretanto decadente. Quantos anos teria a garrafa andado escondida nas funduras do mar?
O velho aproximou o papiro do olhar cansado, como se fosse o ardil para superar as fraquezas do olhar. O esforço fora em vão. Sem óculos, não conseguia entender o que estava escrito no papiro. Ao chegar a casa, foi ao encontro dos óculos com a pressa de quem tinha sido acometido pela apoplexia de perder o ar. Já com os óculos a ampliar as palavras embotadas, percebeu: o papel transcrevia uma receita de farmácia. Não fora ao osso de um náufrago habilitado numa ilha deserta, ou de um marinheiro abespinhado com angústias. Era só uma receita de farmácia, a prescrição de um punhado de medicamentos. O titular abdicou de os aviar na farmácia.
O velho supôs que a pessoa que encheu a garrafa com a receita de farmácia desistiu de viver. Era o velho, mais velho do que na véspera, a desistir da humanidade. Em sucessivos degraus.
Slowdive, “Sugar for the Pill”, in https://www.youtube.com/watch?v=BxwAPBxc0lU
Diga-se, a propósito da colonização idiomática em curso, que não será por muito se usar a língua-franca contemporânea que poderosos mecanismos mentais levam os usuários a tropeçar em livres traduções literais, numa adulteração idiomática que, no máximo, revela preguiça mental de quem assim procede. Talvez nem seja sequer um caso de colonização idiomática. Apenas um cortejo de incidentes que se ficam a dever à menor diligência de uns quantos que usam o inglês de mais. A usura dos usuários dos idiomas, em manifesto erro de tradução.
Hoje diz-se muito: “o meu ponto é este”, ou “quero sublinhar este ponto”. Não se cuida de identificar um sinal de pontuação que é ingrediente da sintaxe. Os usuários lembram-se que em inglês se diz, e acertadamente, “my point is” ou “let me emphasise this point”. Também já deviam ter aprendido, do uso diligente dos idiomas com que lidam, que nem sempre as traduções literais são o instrumento para se falar corretamente um idioma. Ali em cima, onde se lê “ponto” dever-se-ia usar “ideia”, ou “argumento”.
Há um recurso frequente a “expectável”. As pessoas dizem que um determinado acontecimento era “expectável”, quando queriam, porventura, assegurar que esse acontecimento era esperado, que havia toda a probabilidade (conhecidos os contornos do contexto e as suas circunstâncias) de ter acontecido. Como em inglês se diz que “something is expected”, lá se socorrem os facilitadores do arnês da tradução literal para transformarem o “expected” num mimético “expectável”. Não só é erro, como, para piorar, é um termo cheio de inestética (faz lembrar “expetoração”).
Ainda há outro modismo que impinge poluição sonora (quando é entoado) ou visual (quando está por escrito): “fazível”. Diz-se que uma empreitada é “fazível”, dando-se a entender que a tarefa não é fácil mas também não é impossível, exigirá compromisso e empenho do seu agente. Ficaria melhor dizer que a “empreitada é possível”, ou, querendo subir a qualidade semântica, a “empreitada é praticável” – ou ainda, em discurso direto, “consigo fazer o que me pedes.” Os que torpedeiam o idioma vão à origem e avocam o “feasible” para, num exercício de terrorismo idiomático, torcerem a tradução transformando “feasible” em “fazível”. Este é um caso de tradução por osmose sonora.
Apetece inaugurar um abaixo-assinado para condenar à proscrição os que atiram os idiomas para a decadência, pois merecem ser acusados de, pela insistência nestes desconchavos, adulterarem os idiomas: é que não é só o idioma em que se traduz que é ultrajado; também o idioma traduzido é atingido como vítima colateral da moda da tradução amadora.
O meu ponto, em tudo isto, é o ponto final – exigência gramatical para terminar uma frase e um texto.
Massive Attack, “Girl I Love You” (live at Fuji Rock 2010), in https://www.youtube.com/watch?v=lBu3jjYMXxs
Volto ao êxtase das horas a vau, sem medo dos naufrágios: não são em vão os corpos como memória. A mnemónica que se antecipa ao futuro não encoleriza. Se não fossem os contratempos, ninguém ovacionava as proezas empilhadas.
O rosto permanece escondido. Torna-se anónimo. Impede a revelação de um nome. Não é a visibilidade dos nomes e dos rostos que se oferece de caução ao menear do mundo. Se houvesse preces pelos desacontecimentos, talvez as religiões estivessem habitadas. Talvez fossem a húbris que convoca almas inquietas. Se o futuro deixasse de ser sobre o futuro – se não fôssemos insaciáveis a querer digerir o que desconhecemos –, não seríamos apóstatas de nós mesmos. Não seríamos refugiados num ermo sem paradeiro, um lugar todavia desejado por não nos deixar à mercê dos avulsos juízes que se debatem com vidas que não são as deles. Não seríamos julgados por contumácia; e nós, em todo o caso, estaríamos orgulhosos de essa ser a acusação.
Seria como habitar uma cápsula em que tudo se resumia à frugalidade do espaço, à frugalidade das palavras que cabem numa estrofe. Podiam dizer tratar-se de covardia. De um ensimesmar catatónico, feito de miragens em barda. Podiam acusar esse mundo privativo de ser uma alucinação; e podiam denunciar o exílio interior como pretexto para a evasão do mundo, de como ele é feito de realidade. Podiam repescar um adjetivo de empréstimo à língua de trapos que (des)embeleza solenidades: incontornável (proclamado sílaba a sílaba, para a ênfase não deixar ninguém sonolento, assim como um camartelo da razão que se esmaga sobre os indigentes).
Não importa. Nós comandamos o coração do relógio por que nos regemos. Somos nós que evitamos os procuradores das coisas inevitáveis, os que legiferam códigos de conduta de adesão irremediável, os que se abastecem da nossa apatia se formos apáticos, os piratas que nos esvaziam de ser. Não é esta a gramática que corre nas nossas artérias. É o salto quântico, a tomada de posse do extático, o enlevo pelas artes que não se colam a doutrinas, as vozes que não seguem compêndios, uma miríade de estrofes que substituem divindades, o mar sentado onde ditamos as mãos para depois as trazermos ao rosto assim tornado luminoso.
Tv on the Radio, “Happy Idiot”, in https://www.youtube.com/watch?v=OaKVy-FlaUA
(Faz de conta que este é um texto ficcional – e é até capaz de ser)
Pedir desculpa não é para qualquer um. Costuma-se dizer que quanto mais poderoso se sentir alguém, menor é a propensão para pedir desculpa quando há lugar a um pedido de desculpa. Se alguém, poderoso, chega ao nosso conhecimento a pedinchar desculpa, ou é a crença popular que fica desmentida, ou fica atestado que a personagem deixou de estar investida em poder.
Há as desculpas genuínas e as que são encenadas. As desculpas como expiação, um meio de obter a redenção (para não onerar as dores de consciência) e as desculpas como pretexto para cobrir um fingimento. Há desculpas que são devidas e outras que não encontram paradeiro, deixando atónitos os que delas são recetores. Desculpas proclamadas em cima de um manto de humildade, que pode ser espontâneo ou apenas uma farsa. Desculpas que são desculpas e outras que são outra coisa qualquer, uma diversão no meio de um tumulto sísmico que tudo desarruma.
Há primeiros-ministros que aparecem como se estivessem num confessionário de igreja, manifestando o arrependimento por terem cultivado certas amizades. E peroram sobre o lugar isolado do governante que, por o ser, não tem – não pode ter – amigos. É um exercício pungente de um homem que subitamente acorda para o mundo, olha à sua volta, e vê a lucidez devolver o bumerangue de uma terrível solidão. Um homem que viu atraiçoada a confiança por alguns dos que eram próximos (não se fale de amigos, em retrospetiva) e tem o ato pungente de, em público exibicionismo, retirar confiança a essas amizades. São amizades destruídas pelo oportunismo dos amigos do primeiro-ministro que, em usufruto desse privilégio, quiseram retirar proveitos materiais em causa própria, deixando o primeiro-ministro à mercê do abespinhado estado da nação. E fá-lo aos olhos insaciáveis do público que nutre estes enredos, como se demandasse no público o procurador da sua angústia, suplicando-lhe que consinta o arrependimento.
Um primeiro-ministro não pode ter amigos – refletiu, numa reflexão toscamente filosófica, o primeiro-ministro. É terrivelmente injusto: um primeiro-ministro não se pode despojar das amizades para que não sobrem dúvidas sobre a sua lisura (e a dos amigos, se não tiverem a noção de que não devem confundir o amigo com o cargo). Um primeiro-ministro é uma pessoa, é gregário: mas o primeiro-ministro não tem ninguém com quem ir a um restaurante, ou ao cinema, ou a um concerto; o primeiro-ministro, que decretou a sua solidão em direto para a televisão, não pode ter vida social, não pode receber convivas em casa nem corresponder a convites para ir jantar a casa de amigos (porque deixou de os ter).
Só que um primeiro-ministro não pode perder a compostura e anunciar em público, como fazem os influenciersque esparramam toda a sua vida nos olhos públicos, que o amigo deixou de o ser, só para receber a bênção dos desatentos cidadãos que se contentam com pouco e estão apenas a dois dedos de distância de serem aldrabados. E mesmo que seja verídico, mesmo que o primeiro-ministro não tenha tolerado a traição de amigos do peito, o resto do país dispensa saber quem é amigo do primeiro-ministro e quem deixou de o ser.
Um primeiro-ministro continua a ter direito à privacidade. Continua a ter o dever de nos poupar ao labirinto da sua intimidade. Um dia destes, um primeiro-ministro que se divorcie vem enxaguar as mágoas em declarações solenes aos olhos das câmaras da televisão e do olhar meio-inquisitivo, meio-desagradavelmente intrusivo, dos súbditos. Para os que no público quiserem participar como juízes num tribunal de família, julguem ou perdoem o primeiro-ministro.
Ele há lá democracia mais pura quando o primeiro-ministro, deixando de ter amigos, aparece compungido a pedir o dote da absolvição aos súbditos?
Indignu, “Devolução da essência do ser” (live ar Arda Recorders), in https://www.youtube.com/watch?v=VeQxK6RLJ-s
Mordo as esquinas da lua, esqueço de que são feitas as planícies que desdentam o futuro – porque milito na imprevidência, na absoluta consumição dos espíritos que se candidatam ao óscar da lhaneza, eu que revindico um lugar cativo no santuário onde se redigem as bissetrizes da complexidade.
Não serei eu a confirmar o prenúncio da agilidade do que é simples, de como todos seríamos modestos se não quiséssemos disfarçar a complexidade da simplicidade; pois se tantos avalizam a teoria, deveras complexa, que a impetuosidade da singeleza, o mérito de saber rascunhar sínteses notáveis, é próprio de uma complexidade em si paradoxal. Se ao menos não fôssemos assaltados por gente autoconvencida sobre a vocação para serem embaixadores dos que não pediram para se investirem nessa incumbência, tudo iria a caminho (e a tempo) de se tornar numa complexidade traduzida em simplicidade. A complexidade seria apenas um disfarce da simplicidade. Ou então, isso mesmo.
Congemina-se a pergunta do momento: interessa sabermos medir as bainhas da complexidade e da simplicidade se elas se podem esvaziar por dentro e depressa se tornam nómadas, transfigurando-se na antítese do que proclamam ser? Há um fio da navalha que se inclina, pendido de um lado para o outro, prometendo a adulteração dos conceitos e há quarenta mil almas despedaçadas por anotarem a ameaça. É de propósito. As pessoas, algumas pessoas, cansam-se dos cânones e só interiorizam a inquietação fundacional se virarem as coisas do avesso. Aos menos prevenidos, deixam uma mnemónica como memória futura: tenham como aceitável a definição que cristaliza o oposto do que julgavam canónico; nessa altura, deixará de haver paradoxos.
Os verbos maiúsculos não serão em vão. Intencionalmente desamarrados das enseadas esconjuradas, os espíritos desaconselhados são admitidos à errância enquanto o tempo se atira ao modo vindouro. Dirão, por serem errantes, que se encostaram ao nevoeiro lacustre em que tudo se obnubila, como participação avençada dos régios provérbios dissolvidos. No dia em que o dia for composto de noite e a noite se esvaziar numa luz clara, talvez sejamos párias, definitivamente párias. Contra os piores prognósticos, que se estilhaçam no bronze fingido que não chega a ser lei.
Black Rebel Motorcycle Club, “Love Burns” (Sergio Manifesto Re-Edit), in https://www.youtube.com/watch?v=9cw5NApyb5o
Assim que seja o desmame, atiram-se os dados à circunstância depois. Evitam-se os congestionamentos arrastados pelas tribunas onde amanhece o tempo. Por uma vez, a ira arrefece, não há temporada que albergue o sangue que de outro modo se ateava numa combustão avulsa.
A alvorada depõe o luar centrípeto. Para os que foram reféns da insónia, a lua extravagante foi metediça. A lua adejou sobre a noite interminável, cercando as vítimas da insónia. E nem por se terem despojado dos paramentos da sobranceria, nem por terem admitido a pequenez no imenso palco a que sobem as matérias sublimes, se diga que ficaram cativas de alguma aprendizagem. Não conseguiram fugir da noite. Ao sentirem o sabor da manhã, reivindicaram um lugar próprio. Baniram a insónia.
Fez lembrar junho na paisagem nórdica. A noite demorava, o dia teimosamente alojado no perímetro dos olhares, os corpos desabituados a estas latitudes imersos numa convulsão horária, inventando as suas próprias insónias. A noite perene que se levanta no Inverno amordaça os corpos a sonos desalfandegados, ou os corpos sublevam-se para confundirem as horas com a persistente dotação da noite?
Não se diga que as bainhas ofendem os dotes estruturais que as congeminam. Não têm vontade própria. Não falam como procuradoras de uma voz própria. O êxtase demove os almocreves que se sitiam em logradouros limítrofes: fogem intencionalmente dos lugares demandados pelos demais, cultivam uma indiferença soporífera. As medalhas angariadas não chegam para aplacar o rendilhado futuro de que nada se sabe. Pudesse ser livre a leitura das páginas, agora uma e depois meia dúzia à frente, para depois regressar atrás, umas duzentas páginas a eito, e seríamos penhores da nossa vontade.
Dizem que somos sepulturas pressentidas. Que não vindicamos a pureza que se extrai da nossa intrínseca impureza, esgrimidos pela anestesia pública e coletiva. Dizem que somos como areia no deserto, matéria que não é caderno de encargo de sementeiras fecundas. Não importa. Somos quem somos, e essa é a corrigenda que ilustra a credencial bastante.
The Last Dinner Party, “My Lady of Mercy”, in https://www.youtube.com/watch?v=mV76WmC5I4s
I
Não se cultivem as trevas na safra dos predestinados. A noite tem lugar no templo dos sonhos. Somos lugares passivos onde se terçam os sonhos. Não somos, sequer, os seus intérpretes.
II
O casario montado sobre o desfiladeiro desafia as improbabilidades. Desconfia-se que não houve mão engenheira no levantamento de casas tão arcanas. Às vezes, os peritos são tão dispensáveis como a lauta ignorância que levanta bandeiras em barda. Anulam-se mutuamente.
III
Nos olhos do rio, os pescadores purificam a paciência.
IV
No esconderijo, qualquer um consegue ser misantropo, alterando-se a fissura da solidão. Os medos ficam à porta, despojados pelo labirinto em que se entretece o esconderijo. Ao fundo, vozes em surdina. Vomitam a neblina que embacia a luz timorata que atravessa os corredores. As vozes furtivas querem destruir aquele lugar. Devem ser agentes secretos, a soldo da normalidade de que tantos se exilam.
V
Diante do marégrafo, o marinheiro de doca seca isola o olhar para saber se vem aí uma maré-viva. Os corações soldados das ruas à volta confiam no seu juízo. Ele não sabe dessa responsabilidade. Mas os seus olhos não se desligam da linha continuamente matraqueada pelo marégrafo. Não está à espera de anomalias.
VI
De cada vez que ria, lembrava-se da viuvez e calava o sorriso. Tinha medo que o defunto estivesse a espiá-la. Habituou-se a estar sob vigilância, o seu desfado a vida inteira. Os que montam atalaias cumprem um bondoso propósito: intercedem pelas almas desprotegidas que precisam de vigilância. Ninguém os censure por serem bondosos.
VII
A senhora idosa fala ao telemóvel. A voz ecoa pela carruagem fora. Está nestes preparos há quinze minutos. Uma francesa levanta-se do lugar, cinco filas à frente, interpela a mulher num inglês tirado a ferros. O passageiro vizinho da palradora passageira oferece-se para tradutor. A francesa não consegue ler o livro porque a septuagenária está há tempo de mais ao telemóvel e a falar muito alto. O vizinho da idosa perguntou à turista se existe uma lei que obrigue o silêncio dentro do comboio. A francesa virou costas sem responder e dirigiu-se ao átrio que separa as duas carruagens. Por lá se manteve, a coberto da vozearia da idosa, até chegar à estação de destino.
VIII
As preces são todas desiguais. As entoações diferem, há um ou outro desvio na ladainha, as motivações são diferentes. Um cientista social devia inventariar a ocorrência das súplicas durante as preces para se perceber se as divindades consultadas estão de atalaia ou se foram embragadas por uma maré-viva a destempo.
Yard Act, “Dream Job”, in https://www.youtube.com/watch?v=Pc5t9m2Hg9c
A partida reavia os prantos demorados. As almas separadas não sabiam se conseguiam amputar o ónus da distância. Faziam juras. Olhavam fixamente nos olhos recíprocos como se a convicção dos olhares semeasse as juras amanhecidas. Diziam, em sussurro, que o tempo mais tarde os resgataria da distância. Mesmo que não soubessem quando seria esse futuro.
Partiam sem saber se o futuro se conseguia. Para não perdoarem o esquecimento, emolduraram as juras: a palavra era a assinatura de sangue de que precisavam. Até saberem que dispensavam as juras. Elas eram metáfora que sossegava as almas apoquentadas. Diziam: vamos falar todos os dias, nem que seja só um minuto. Haverá dias em que vamos falar dez, vinte, trinta minutos: precisamos de um diário de bordo, atravessar as tuas palavras na minha carne, como se continuássemos a ser do corpo outro só através das palavras que matam a distância.
Juraram que não seriam procuradores da saudade. Não importava a melancolia se dela soubessem não ser redenção. Ele levava na carteira uma fotografia dela a corpo inteiro. Ela manteria espalhado pela casa o espólio que retrata a construção da felicidade, ele sempre por perto, um rosto presente. Do outro lado do mundo, ele será o seu embaixador. Quando for a lugares novos, os seus olhos serão o seu guia, como se ela estivesse ali mesmo ao seu lado. E nem os díspares fusos horários serão revés para continuarem a ser presentes no meio de tanta ausência que é feita da distância imposta por um mundo que é sempre grande de mais.
Num último volteio de saudades que juraram rebater, ele prometeu que vai trepar no corrimão da vida para a vir buscar. Ela hesitou, subitamente tomada pelo medo. “Eu nunca saí daqui, não sei se consigo, tenho medo.” Ele sossegou-a: “em mim terás a âncora necessária, o esteio que te fará esquecer de onde vens, só contará saberes que estás comigo, não onde estás. Se quiseres, serei o teu cicerone, a bandeira que hasteias. Os lugares em que estivermos serão sempre a nossa casa.”
A voz silabada penetrou-a como um bálsamo. A angústia em que instantaneamente caiu dissolveu-se no perímetro da saudade daquele futuro prometido. Ela não sabia se algum dia seria o vitral daquela promessa. Ao menos, a despedida já não era uma amputação.
Slowdive, “Kisses” (live at Glastonbury), in https://www.youtube.com/watch?v=oAPdv7tqwYs
Não queria adoçante: uma farsa de açúcar não tem admissão na constelação dos ingredientes. Era como os desnatados, os descafeinados, os vinhos sem uvas, os lácteos sem lactose. Insurgia-se contra o mundo que o desmata da sua dimensão. Não queria ser alguém destinado a futura adulteração – como se o sangue pudesse ser feito de outra matéria, os ossos de fibra de carbono e os olhos purificados dispensassem óculos.
Insistia em que tudo fosse devidamente açucarado. Não transigia com iguarias que sempre foram picantes e que capitulam à rigidez dos verbetes sanitários que desaconselham a malagueta, a bem da saúde pública. Deixou de saber a vida, viver numa terra assim, morbífica e inodora, um lugar que começou a esvaziar-se por dentro para aderir aos modismos de uns quantos que se apoderam da tutela dos demais.
Éramos todos cobaias de um perfecionismo encantatório fabricado por uma casta. Éramos cobaias, mas não perguntaram se aceitávamos. Tudo se pressentia num estéril monumento que, era dito, era em nossa homenagem. As cordas não eram lassas no amordaçar dos corpos. Tudo coabitava com as melhores intenções. As cordas eram invisíveis, mas tínhamos os pulsos atados, não os conseguíamos mexer.
Os dias seguiam uns atrás dos outros, como se apenas fossem miragens que os hauriam. O logro do artificial não se fazia sentir nessa medida. O artificial era parte da redenção de todas as impurezas que nos cobriam de torpeza. Não nos importávamos: a menos que a antropologia esteja errada, sempre se ensinou que a espécie traduz a imperfeição.
A empreitada ainda não estava terminada. Enquanto se entretinham com a sua onfaloscopia, os timoneiros preparavam a evaporação do aroma das flores, fingindo auroras boreais em latitudes improváveis, para compensar. Preparavam a erradicação do sal do mar, pois o sal causa doenças incuráveis, reproduzindo estâncias estivais na montanha e estâncias de esqui à beira-mar, para compensar. Ensinavam a preparar as iguarias do Pantagruel tradicional sem os ingredientes típicos, na reaprendisagem do palato sem direito a interpelações que se oponham à reinvenção da gastronomia. Em compensação, as pessoas teriam mais um dia de férias por ano. Preparavam-se para proibir em barda, para que os cânones dos timoneiros não fossem ofendidos, não cuidando de saber se para vingar a vontade de uma minoria a da imensa e silenciosa maioria fosse sacrificada.
Faltava: açucarar a existência que se tornava enfadonha e limitada.
P.J. Harvey, “The Wheel” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=yXvQLo3Y60U
A pele parecia feita de azulejos. Continuamente deitada na manhã inaugural, vertendo os poros sobre o pressentimento do dia. As vozes eram um lampejo distante, um murmúrio que escondia palavras. A claridade embaciada pelo nevoeiro abatia-se sobre a vontade, subitamente travada contra o apelo do dia. Antes que se estilhaçasse de imodéstia, a pele cobriu-se com as páginas que iam atravessar o dia.
Sem contar, a rua incidental amealhou uns instantes. Distraído, quase entrou em choque frontal com um homem que coincidiu na esquina. Limitaram os danos a um breve encosto e ao esgar de desprazer do homem apressado, que a seguir sacudiu a gabardine das impurezas. Não se incomodou. Instintivamente recuara o olhar, notando como o outro sacudiu a gabardine, mas depressa firmou o olhar para o horizonte. A desimportância das coisas assim obrigava.
Era no horizonte que repousava o momentâneo encantamento. O horizonte tinha várias camadas trespassadas por diferentes espessuras de neblina, umas mais densas, outras mais finas, como se tivesse armado num bolo mármore. Às diferentes camadas correspondiam diferentes luzes. Um pressentimento ecoava nas entranhas: as unhas de criaturas sem identidade soltavam-se dos interstícios da neblina, penetrando na carne das pessoas que iam na direção do horizonte, mas as pessoas continuavam impavidamente a caminhar até que se fundiam com o horizonte. Não parecia que estivessem a diluir-se no fio do horizonte. Acreditou que à medida que a sua estatura se apequenava na proximidade do horizonte, elas abrigavam os horizonte na sua algibeira.
Também não tinha importância, a especulação. Ele não ia para o horizonte. Se fosse um elétrico com placa indicativa do destino, o que seria visto pelas outras pessoas? Não sabia. Saiu de casa e não sabia para onde ia. Apenas apetecia sair de casa, respirar o frescor da manhã, endurecer os azulejos da pele expondo-os à fria temperatura que inaugurava o dia. Não estava agasalhado a preceito, mas foi de propósito. Um amigo de longa data, nascido em terras gélidas, não se cansava de apregoar que o frio conserva.
E ele, esperançado no vagaroso amadurecer, apostando em prolongar a vida até onde a pudesse viver com vida, quase arriscando assegurar que se tudo corresse a preceito um dia destes seria nonagenário, emprestou o corpo desprotegido ao frio da alvorada. A pele endurentada era a muralha de que precisava.
Suede, “The Beautiful Ones” (live at Top of the Tops), in https://www.youtube.com/watch?v=0G0ngqYEyb8
Não se adoça a boca dos que esperneiam contra a indiscrição que uma imagem deles revela. E quem gosta de ficar mal na fotografia? – perguntam aqueles que são vítimas de fotografias e os outros que, em insincera solidariedade, são fotogénicos.
O baraço joga-se contra os rostos que não são acolhidos pela generosidade de uma fotografia. Sentem-se injustiçados. Aquele é o seu mau lado, ou o instante captado pela fotografia mostra um esgar que coube milimetricamente no instante da fotografia, um supremo revés. Os que protestam por fazerem má figura numa fotografia abraçam-se à frivolidade moderna, que tende a espelhar o acessório, despromovendo o essencial a seu ajudante de campo.
As pessoas contristadas com a má fotogenia abespinham-se por pouco. Uma fotografia é um instante, uma infinitésima molécula de uma vida muito mais inteira. Em seu desabono, dirão que aquele fragmento as eterniza. E elas não são à imagem daquela imagem que as treslê. Agem como se a fotografia contestada fosse uma marca registada. Não reconhecem que as pessoas raramente são reconhecidas na rua pelos rostos que uma fotografia sua ostenta. Há ângulos mortos, sombras que roubam claridade e anotam traços ocultos, quase como se uma fotografia desse corpo a uma re-identidade do fotografado. Uma fotografia que adultera o rosto carrega a mentira para memória futura. As pazes serão feitas se a pessoa se desembaraçar dessa fotografia e escolher outra que lhe seja compatível.
Se a reação for virada do avesso, a vítima da má fotografia de si mesma rir-se-á do desfavor do fotógrafo, não insultando as circunstâncias que se jogaram contra si nem vivendo sobressaltada pela fotografia. Só aqueles que não se levam muito a sério o conseguem. Se não forem acometidos por uma crise de autoestima, apreciam a má fotografia averbada e guardam o protesto para outras instâncias que se prestam mais ao protesto. Sabem que o rosto diário não é a representação da má fotografia. A má fotografia será creditada a seu favor: quem os conhecer, saberá que o original é melhor do que a cópia.
Ou fica-se mal na fotografia se alguém for interpelado para a televisão para desfazer uma dúvida gramatical e der a resposta errada. O desmazelo pela gramática é pago com aqueles trinta segundos de má fama, que não são apagados dos registos. Esta pessoa pode pedir à jornalista que não passe a sua resposta no programa de televisão, invocando um direito (ele há sempre direitos a serem inventados) à privacidade da vergonha própria?
mutu, “Terra de Cegos”, in https://www.youtube.com/watch?v=ioNP1XVwUi0
(Não se cuida aqui de assuntos metafísicos, nem de epifanias há notícias a dar)
O firme mecanismo da convicção forma-se interiormente como uma lava que vai endurecendo com o esfriar. Se não fosse por essa lava dantes incandescente, persistia uma anemia dos sentidos, uma observação desinteressada, uma apatia descaracterizadora. Éramos apenas por fora, perfeitos candidatos a farsas de nós mesmos.
Há momentos em que uma erupção toma conta de tudo. Acompanhada por um cortejo de abalos sísmicos, as fundações estilhaçam. As medidas são refeitas: às vezes passamos a ser território maior, outras vezes é-nos amputada uma parte que corresponde a uma justiça que estava em paradeiro incerto. Não precisa de ser um dédalo a desafiar os queixumes das almas. Não se recolhe a imperatividade de ruturas, como se os momentos heurísticos não possam emergir de geração espontânea. Eles não têm de estar dependentes de circunstâncias que se passam no foro do ser.
Às vezes, os desafios são uma fonte inesgotável de mudança. Às vezes, é preciso derrotar a inércia de quem está acostumado à vagarosa marcha do tempo, empilhando aqui e ali as provas de como tudo se repete, maquinalmente, e como a noção da incerteza é o medo maior que os pode assaltar. E como essa repetição maquinal dissolve o sangue num lençol de comiserações várias que empenham o ser contra a sua própria ossatura. Quando a têmpera não transige com a inércia que a arrasta para o sopé da falésia, inauguram-se as várias encruzilhadas que reativam o pensamento e que exigem resoluções – quaisquer que elas sejam, menos uma: o nada fazer, deixando o passado, pela sua feição consuetudinária, adulterar o futuro.
Acreditar que ainda há páginas que estão à espera de ser tamboriladas é um bálsamo que dispensa os cuidados intensivos das almas dedicadas à monotonia da rotina, das almas que se exasperam com a ameaça de mudança como quem treslê uma indulgência com a soberba da arrogância.
Acreditar é uma saudável loucura que dispensa intervenção corretiva. Que dispensa, até, que se use a palavra loucura. Mas a loucura transfigura-se no palco onde se terçam as aspirações contra o murmúrio que alimenta a conservação de tudo o que já foi conservado. Acreditar e conseguir ser louco devia dar direito a comendas em vez de internamento.
Mão Morta, “Em Direto (para a televisão)” (ao vivo, Antena 3), in https://www.youtube.com/watch?v=tL0RfgFjbvA
Já devia ter deixado de ser assunto: sua excelência, o “alto magistrado da nação”, muito certamente por defeito de feitio, foi o próprio arquiteto da banalização do (seu) cargo.
(É, todavia, prematuro estender as consequências para memória futura: o estilo das presidências é permeável ao cunho pessoal do titular do cargo. E como não há notícia do futuro inquilino do palácio de Belém…)
A opção pela proximidade das pessoas; a retórica dos afetos (inteligentemente usada durante a pandemia, quando o confinamento expôs a fragilidade emocional de muitos); a verborreia comentadora, como se ainda andasse a comentar numa televisão contra um estipêndio; a pose catedrática que o levou a explicar desde as mundanidades aos altos assuntos do Estado e da ordem internacional como se estivesse a ensinar às criancinhas na escola – tudo contribuiu para um estilo presidencial trespassado pela hiperatividade; pelas poses desbragadas (quem se pode esquecer do cumprimento ao Papa, quase arrancando a sua mão? Ou do comentário diário em fato-de-banho, durante as férias?); por uma comunicação cacofónica que, sem surpresa, tropeçou em várias gafes; pelo permanente acompanhamento de jornalistas e câmaras da televisão, como se todas – ou quase – as atividades de sua excelência tivessem de ficar documentadas numa espécie de arquivo feito em direto (ou, se quiséssemos ser verrinosos, naquilo que se poderia apodar de “presidência Big Brother” – pois se até tivemos direito a testemunhar o desnudar parcial de sua excelência quando foi vacinado contra a COVID-19).
O recente episódio do esgrima argumentativo com o embaixador da Palestina é só mais um episódio para a saga de uma presidência desastrada. Marcelo começou por estar mal porque não sabe do seu lugar institucional, sendo ele próprio o responsável por entorses protocolares: desde quando um embaixador é o interlocutor de um presidente da república? Marcelo voltou a cair no pecado da incontinência verbal. No diálogo com o embaixador, esteve mal. Primeiro, porque ainda existe ministro dos negócios estrangeiros e, a menos que o sistema político tenha mudado, é o governo que define a política externa. Segundo – e passando por cima da separação de poderes uma vez mais omitida pelo presidente – num tema tão sensível, onde a polarização ferve nas veias ateadas por ódio ou facciosismo, falar como falou expôs sua excelência à crítica gratuita mas, no entanto, fundamentada. Não sugiro que o presidente não possa ser criticado; não deve é sentar-se tão depressa no “lugar do morto” e ficar exposto à crítica que, a páginas tantas, já se mistura com um certo tom condescendente (as pessoas já lhe vão creditando o devido desconto).
Como se não fosse suficiente o exposto, Marcelo teve de vir para as câmaras e microfones justificar o que disse. Sem entender que o ato já não tinha emenda (a não ser, talvez, um pedido de desculpas pela incontinência verbal), ficou pior na procura de redenção. Marcelo quis explicar o que só a sua hiperatividade consegue explicar. Quem se desdobra em justificativas depressa morde a língua ao escorregar em material potencialmente contraditório e acaba refém da falta de credibilidade.
Poder-se-ia dizer, em abono de Marcelo, que faz por aumentar a sindicância junto dos cidadãos. Fosse outro o presidente e primava pelo silêncio, puxando lustro aos galões presidenciais que legitimariam a dispensa de justificações. E mesmo a alguém que não é sensível a institucionalismos (o abaixo assinado, para que conste) causa uma certa confusão o excesso de humildade política de quem ocupa o lugar cimeiro dos órgãos de soberania. Aos muitos défices de democracia junta-se um obnóxio, e apenas aparente, excedente democrático de sua excelência. Juntando mais ingredientes à banalização do cargo.
Marcelo, imparável, esforça-se por cavar um pouco mais a cova do risível. Foi confrontado na rua por manifestantes pró-Palestina que pediram explicações, em direto para as televisões, como não podia deixar de ser. A certa altura, um dos populares advertiu sua excelência: “o senhor fala de mais, o senhor fala de mais”. E senti um misto de regozijo (porque Marcelo pôs-se a jeito) e de lamento: se isto não é a prova cavada da banalização da função presidencial, não sei o que se será.
Os adeptos da proximidade dos atores políticos aos cidadãos devem estar extáticos. Eu temo que isto não seja um défice democrático virado do avesso. Mais parece a trivialização da política, um falso conforto da “gente comum”, a “arraia-miúda”, (como Marcelo disse num dez de junho, citando Fernão Lopes), que agora acha que está a dois dedos de conversa dos mandantes e que até os podem pôr em sentido – outra vez: em direto para a televisão.
The Chemical Brothers, “Goodbye”, in https://www.youtube.com/watch?v=gr12Lfo4dO4
- Ora: se tudo fosse assim altar, os outros só queriam ser como nós.
Era um mote. Ouvia-o com a atenção que podia arregimentar. Ouvia-o como se estivesse a escandir as palavras que ele bolçava vertiginosamente. O encantamento pela idiossincrasia era pueril e devastador. Não era capaz de anotar dois ou três defeitos de feitio que pudessem entrar num compêndio de sociologia da nação. A nação era deus.
- Oxalá pudéssemos deixar em herança só um pedaço da nossa História.
Interpelava-o: e essa História é só composta por episódios exemplares, ou podemos considerá-la uma epístola de equívocos?
(E com isto não entrava no intelectualmente obsceno exercício de apurar as culpas de gerações anteriores no momento presente, como se a retroatividade se vestisse do avesso e se colasse a nós, obrigados a responder pelos crimes antepassados.)
- O tempo percute a nossa grandeza. Ser humilde é uma manifestação de grandeza. A mais difícil de todas. Quando nos deixámos ficar pequenos, por ablação do império, soubemos ser a estrofe que sintetiza a modernidade. Mas o passado não se apaga. É de lá que vem o verso egrégio que inunda o hino.
Não conseguia entender como aplainava a sintomática necessidade de futuro projetando-o através de uma osmose do passado. Esse passado estava repleto de equimoses. Era como se todo o futuro, aliás, todos os tempos, estivessem sitiados pelo peso do passado que se arqueava imperativamente sobre os tempos múltiplos. De acordo com ele, o passado arqueava-se sobre todos os nacionais, mesmo aqueles que recusavam o sentido heroico da História. Para mim, isto não era uma mundivisão. Era facciosismo que encarnava no devir que vinha do pretérito: todo aquele encantamento pelo húmus pátrio confundia-se com uma apologia fantasiosa, quase como se lhe perguntassem porquê e ele se limitasse a responder “porque sim”.
- Denuncio o verso “Daqui houve nome Portugal” (mas ele não sabia o nome do poeta: apanhado em falso, admitiu o lugar-comum: seria umheterónimo do Pessoa): nem é daqui que o nome se projeta, tantos os mundos que os antepassados deixaram em legado ao mundo; e o nome Portugal é uma marca registada dos tempos imemoriais, um património que alcança a intemporalidade pelo fruto que ficou para a modernidade do mundo.
Parecia-me uma estultícia este saudosismo (se ele soubesse do Pessoa, logo completaria a estrofe: “saudades do futuro”). Gravitava numa órbita infantil, acreditando na lotaria dos outros em comparação com a lombada messiânica que se inscrevia no nome do país. Um dia, não tinha acordado com a paciência ativada e sugeri que ele devia chamar Nicelândia ao país por que se ajoelhava num altar perene.
PJ Harvey, “Down By the Water” (live at Oslo), in https://www.youtube.com/watch?v=WJq2AkzkC2o
Vingo a efemeridade da manhã com o viço que não capitula. O apogeu da lucidez exige acareação. Exige um contraditório que se joga nas paredes interiores em que o sentir se conjuga.
As pessoas passam apressadas. Habitante único da esplanada, contrasto o vagar do tempo com os vultos apressados. Como se as pessoas se desmaterializassem e não passassem de corpos indiferentes, possivelmente nomes que carregam angústia, banalidade, errância, esperança arregaçada, o orgulho de serem que esbarra no descontentamento de pertencerem, uns dias batizados pela má autoestima, outras vezes heroínas de si mesmas. Um nomadismo apático arremete quando se deslocam na safra diária dos seus afazeres. Não são de lado nenhum. E eu também não.
Os dedos estacionados em cima da mesa dançam suavemente no tampo, desenham palavras que se soltam do pensamento. Ninguém quer saber das acareações. São lutas internas restringidas ao vulcão interno em que cada um se consome. Um vago sabor acidulado toma conta da manhã. As dores de crescimento, talvez; mas o amadurecimento não seria mecenato do apaziguamento, o inventário que varre os resíduos pendentes a quebrar na armadura do desmedo? Não é interminável, a empreitada. O amadurecimento não é o cais demandado: é só mais um apeadeiro atravessado a caminho de uma elucidação adiada.
Os dedos daninhos aprisionam as palavras que teriam voz. Correm contra a moldura do tempo, correm sozinhos como se houvesse lugarejos por habitar e tudo fosse um interminável monólogo deitado ao olvido do mar. A acareação é uma terrível contenda interna, os diferentes pesares abrindo-se em fraturas expostas. E por dentro, uma vertigem inundada por correntes de sentido contrário, até uma maresia despontar nos interstícios da lucidez.
Contrapõem-se as diferentes camadas do passado. Invetiva-se o futuro. (Continua a ser alimentada uma inútil consagração do tempo vindouro, um desperdício em estado puro.) Sem saber açambarcar o lodo contíguo, não se emparelha a desfortuna com o seu paradeiro. Finge-se. Finge-se que há apeadeiros não visitados, palavras que não foram ditas, arrependimentos que, de o serem, cultivam o arrependimento sacrificial: haver a palavra arrependimento. A culpa não se gradua ao remexer os estados de alma. Não se expia com manobras dilatórias ou extravagantes ruminações que dissolvem o sentido das palavras a partir de dentro.
Os dedos matraqueiam a melodia que chega aos ouvidos através dos auriculares. Antes fosse essa a sua coreografia. Antes não se prestasse à acareação dos diferentes tempos. Ao menos, as pessoas que passam, indiferentes, nem dão conta que estou na esplanada e que elas são o meu palco.
Radiohead, “Everything in Its Right Place/Idiotheque” (live at Lollapalooza), in https://www.youtube.com/watch?v=K-NorCIKfak
“(...) [A] União Europeia pode orgulhar-se de exercer uma forma de poder que não tem antecedentes na história. (...) Como um tutor cheio de bondade, preocupa-se com a nossa saúde, com o nosso saber-viver e com a nossa moral. Só teve esta ideia para nos dar a conhecer o que é bom para nós; aos seus olhos, estamos muito desamparados e somos muito imaturos. É por isso que temos necessidade de que tomem conta de nós, e nos reeduquem a sério.”
Hans Magnus Enzensberger, O Afável Monstro de Bruxelas ou a Europa sob Tutela, Relógio d’Água, 2012.
É como se estivesse a fazer contrabando, o euro-entusiasta todavia crítico que não se esconde das interrogações: e se fôssemos desobedientes, organizando brigadas para fazerem festins quando um punhado de cidadãos desalinhasse dos compêndios moralistas e exercesse a sua independência? E se não capitulássemos perante a tutela de engenheiros sociais que traduzem tiranias de outrora por suaves modalidades que ditam comportamentos? E se percebêssemos que o verbo “ditar” cauciona os seus fautores como aqueles que ditam, os ditadores modernos?
Foi para este ativismo regulatório que foi inventada a Europa política que nos rege? É esta militância educadora do bem comum, instruindo o cidadão (o bom cidadão) pelos caminhos certos, compatível com a categórica certeza de neoliberalismo que dizem ser o ADN da Europa? Foi para esta finalidade que a Europa política se agigantou do nobre propósito da paz e do livre comércio para descer ao nanismo de um protagonismo político gorado? Um otimista europeu pode continuar a sê-lo se os arquitetos da Europa insistem em derramar sobre os súbditos todo um programa paternalista, como se tivéssemos sido deduzidos como incapazes? Onde está o mandato que a Europa não apresenta, o mandato que a habilitou a rivalizar com uma certa omnipresença divina? Onde está a procuração passada para a Europa cuidar tão diligentemente de nós, uma alma mater apenas existente na ilusória presciência dos seus arquitetos?
As interrogações podiam continuar. A reeducação transborda as gerações e começa a ser uma ponte sem portagem que as atravessa perante a sua inação, educadas para estarem acostumadas. Como uma voz tonitruante que deixou de incomodar a plangência do pensamento porque fomos instruídos à habituação dessa voz. Os decibéis continuam a povoar o pensamento, mas já estamos anestesiados. A Europa com pretensões agigantar-se-á, tentando elevar-se do pequeno palco em que se situa, montando nos tacões que fingem um palco com visibilidade: dir-se-á que as doses não homeopáticas de anestesia nos livram das dores do mundo que não nos competem. Intui-se a exigência de um agradecimento, como se nós, em pose laudatória, condecorássemos a Europa que quer aparecer na geografia da política à custa da nossa apatia.
Esta Europa, aconselhadora, eufemisticamente intrusiva, trazendo o cidadão pela trela benevolente de uma constelação de direitos (alguns fátuos), é a nossa maestra. Foi-nos extirpada a liberdade criativa, pautamo-nos pelos manuais de instruções, de natureza e calibre plural, que nos ensinam o que cantar, como declamar, como apurar as artes que nos continuam a educar, o que não fazer. Os espíritos livres podem ousar um desfile interminável de interrogações que podiam acossar a Europa, deixá-la sobressaltada pela ausência de resposta ou pela honestidade das respostas embaraçosas. A Europa substitui-nos no usufruto de uma cidadania ativa: pensa por nós, decide por nós, comenta por nós, recomenda a esmo (adulterando recomendações em comandos que não convém desligar), cinzela comportamentos antes que tenhamos o topete de colocar os cotovelos em cima da mesa, palitar os dentes no fim da refeição, arrotar como sinal de aprovação da refeição oferecida pelo anfitrião (ah!, perdão: isso é em alguns países árabes e em partes da China), despe-nos de vícios todavia alimentados pela hipocrisia dos Estados – ainda está em falta um código de conduta para o sexo, mas a Europa vai a tempo de publicar o seu kamasutra, não perdemos pela demora.
A Europa dita, conversa, educa, orienta, aconselha (com efeitos desejavelmente imperativos). A Europa infantiliza-nos e nós, passivamente, aderimos à indiferença, tutelados com a conivência do silêncio, pois fomos convencidos que é melhor haver quem pense por nós. E se, ao deixarmos que a Europa pense por nós, não percebemos a menorização cidadã, somos os primeiros a caucionar uma Europa intervencionista, adestradora de comportamentos, zeladora de padrões morais, uma Europa que percorre as nossas veias sem darmos conta, uma Europa castradora. Somos cúmplices desta Europa, pese embora não tenhamos nela depositado um mandato para engenhar os códigos de conduta e de pertença que perfumam a nossa bulimia cidadã e engordam uma máquina burocrática que nos dispensar de sermos os indivíduos autónomos que desaprendemos de ser.
No cortejo dos amanhãs que ainda escondem a vocação do chão que haverá de ser pisado, esta Europa transbordou o seu mandato. Ela é necessária para um punhado de funcionários que precisa deste cerco para fazerem prova de vida, para costurarem as bainhas de uma Europa diligentemente arquiteta que procede à ablação da quimera do ser. Povoada por gente apática, a Europa alimenta-se desta apatia. No emaranhado de ordenanças e empenhada no circuito vital que perpetua a sua ostentada existência, a Europa hiperativa adulterou-se, tornou-se uma hipérbole de si mesma, como se fosse possível substituir-se ao erro histórico que são os Estados ainda por julgar por crimes contra a humanidade na sua histórica associação a uma pletora de guerras vãs. Uma Europa que se encomenda à mesma estadualidade dos Estados-réus, ou a suas versões adaptadas como se fossem o étimo de uma estadualidade reconvertida, aprisiona a liberdade nas muralhas da sua ambição.
Uma Europa assim política participa no rumo universal da desumanização. Julgava-se que, fundada na Europa resgatada aos clássicos, esta Europa tivesse aprendido com a História. Não aprendeu. E nós, também não.