3.11.23

Acareação

PJ Harvey, “Down By the Water” (live at Oslo), in https://www.youtube.com/watch?v=WJq2AkzkC2o

Vingo a efemeridade da manhã com o viço que não capitula. O apogeu da lucidez exige acareação. Exige um contraditório que se joga nas paredes interiores em que o sentir se conjuga. 

As pessoas passam apressadas. Habitante único da esplanada, contrasto o vagar do tempo com os vultos apressados. Como se as pessoas se desmaterializassem e não passassem de corpos indiferentes, possivelmente nomes que carregam angústia, banalidade, errância, esperança arregaçada, o orgulho de serem que esbarra no descontentamento de pertencerem, uns dias batizados pela má autoestima, outras vezes heroínas de si mesmas. Um nomadismo apático arremete quando se deslocam na safra diária dos seus afazeres. Não são de lado nenhum. E eu também não.

Os dedos estacionados em cima da mesa dançam suavemente no tampo, desenham palavras que se soltam do pensamento. Ninguém quer saber das acareações. São lutas internas restringidas ao vulcão interno em que cada um se consome. Um vago sabor acidulado toma conta da manhã. As dores de crescimento, talvez; mas o amadurecimento não seria mecenato do apaziguamento, o inventário que varre os resíduos pendentes a quebrar na armadura do desmedo? Não é interminável, a empreitada. O amadurecimento não é o cais demandado: é só mais um apeadeiro atravessado a caminho de uma elucidação adiada.

Os dedos daninhos aprisionam as palavras que teriam voz. Correm contra a moldura do tempo, correm sozinhos como se houvesse lugarejos por habitar e tudo fosse um interminável monólogo deitado ao olvido do mar. A acareação é uma terrível contenda interna, os diferentes pesares abrindo-se em fraturas expostas. E por dentro, uma vertigem inundada por correntes de sentido contrário, até uma maresia despontar nos interstícios da lucidez. 

Contrapõem-se as diferentes camadas do passado. Invetiva-se o futuro. (Continua a ser alimentada uma inútil consagração do tempo vindouro, um desperdício em estado puro.) Sem saber açambarcar o lodo contíguo, não se emparelha a desfortuna com o seu paradeiro. Finge-se. Finge-se que há apeadeiros não visitados, palavras que não foram ditas, arrependimentos que, de o serem, cultivam o arrependimento sacrificial: haver a palavra arrependimento. A culpa não se gradua ao remexer os estados de alma. Não se expia com manobras dilatórias ou extravagantes ruminações que dissolvem o sentido das palavras a partir de dentro.

Os dedos matraqueiam a melodia que chega aos ouvidos através dos auriculares. Antes fosse essa a sua coreografia. Antes não se prestasse à acareação dos diferentes tempos. Ao menos, as pessoas que passam, indiferentes, nem dão conta que estou na esplanada e que elas são o meu palco. 

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