I
Não se cultivem as trevas na safra dos predestinados. A noite tem lugar no templo dos sonhos. Somos lugares passivos onde se terçam os sonhos. Não somos, sequer, os seus intérpretes.
II
O casario montado sobre o desfiladeiro desafia as improbabilidades. Desconfia-se que não houve mão engenheira no levantamento de casas tão arcanas. Às vezes, os peritos são tão dispensáveis como a lauta ignorância que levanta bandeiras em barda. Anulam-se mutuamente.
III
Nos olhos do rio, os pescadores purificam a paciência.
IV
No esconderijo, qualquer um consegue ser misantropo, alterando-se a fissura da solidão. Os medos ficam à porta, despojados pelo labirinto em que se entretece o esconderijo. Ao fundo, vozes em surdina. Vomitam a neblina que embacia a luz timorata que atravessa os corredores. As vozes furtivas querem destruir aquele lugar. Devem ser agentes secretos, a soldo da normalidade de que tantos se exilam.
V
Diante do marégrafo, o marinheiro de doca seca isola o olhar para saber se vem aí uma maré-viva. Os corações soldados das ruas à volta confiam no seu juízo. Ele não sabe dessa responsabilidade. Mas os seus olhos não se desligam da linha continuamente matraqueada pelo marégrafo. Não está à espera de anomalias.
VI
De cada vez que ria, lembrava-se da viuvez e calava o sorriso. Tinha medo que o defunto estivesse a espiá-la. Habituou-se a estar sob vigilância, o seu desfado a vida inteira. Os que montam atalaias cumprem um bondoso propósito: intercedem pelas almas desprotegidas que precisam de vigilância. Ninguém os censure por serem bondosos.
VII
A senhora idosa fala ao telemóvel. A voz ecoa pela carruagem fora. Está nestes preparos há quinze minutos. Uma francesa levanta-se do lugar, cinco filas à frente, interpela a mulher num inglês tirado a ferros. O passageiro vizinho da palradora passageira oferece-se para tradutor. A francesa não consegue ler o livro porque a septuagenária está há tempo de mais ao telemóvel e a falar muito alto. O vizinho da idosa perguntou à turista se existe uma lei que obrigue o silêncio dentro do comboio. A francesa virou costas sem responder e dirigiu-se ao átrio que separa as duas carruagens. Por lá se manteve, a coberto da vozearia da idosa, até chegar à estação de destino.
VIII
As preces são todas desiguais. As entoações diferem, há um ou outro desvio na ladainha, as motivações são diferentes. Um cientista social devia inventariar a ocorrência das súplicas durante as preces para se perceber se as divindades consultadas estão de atalaia ou se foram embragadas por uma maré-viva a destempo.
Sem comentários:
Enviar um comentário