13.11.23

Açucarado

Slowdive, “Kisses” (live at Glastonbury), in https://www.youtube.com/watch?v=oAPdv7tqwYs

Não queria adoçante: uma farsa de açúcar não tem admissão na constelação dos ingredientes. Era como os desnatados, os descafeinados, os vinhos sem uvas, os lácteos sem lactose. Insurgia-se contra o mundo que o desmata da sua dimensão. Não queria ser alguém destinado a futura adulteração – como se o sangue pudesse ser feito de outra matéria, os ossos de fibra de carbono e os olhos purificados dispensassem óculos.

Insistia em que tudo fosse devidamente açucarado. Não transigia com iguarias que sempre foram picantes e que capitulam à rigidez dos verbetes sanitários que desaconselham a malagueta, a bem da saúde pública. Deixou de saber a vida, viver numa terra assim, morbífica e inodora, um lugar que começou a esvaziar-se por dentro para aderir aos modismos de uns quantos que se apoderam da tutela dos demais.

Éramos todos cobaias de um perfecionismo encantatório fabricado por uma casta. Éramos cobaias, mas não perguntaram se aceitávamos. Tudo se pressentia num estéril monumento que, era dito, era em nossa homenagem. As cordas não eram lassas no amordaçar dos corpos. Tudo coabitava com as melhores intenções. As cordas eram invisíveis, mas tínhamos os pulsos atados, não os conseguíamos mexer. 

Os dias seguiam uns atrás dos outros, como se apenas fossem miragens que os hauriam. O logro do artificial não se fazia sentir nessa medida. O artificial era parte da redenção de todas as impurezas que nos cobriam de torpeza. Não nos importávamos: a menos que a antropologia esteja errada, sempre se ensinou que a espécie traduz a imperfeição.

A empreitada ainda não estava terminada. Enquanto se entretinham com a sua onfaloscopia, os timoneiros preparavam a evaporação do aroma das flores, fingindo auroras boreais em latitudes improváveis, para compensar. Preparavam a erradicação do sal do mar, pois o sal causa doenças incuráveis, reproduzindo estâncias estivais na montanha e estâncias de esqui à beira-mar, para compensar. Ensinavam a preparar as iguarias do Pantagruel tradicional sem os ingredientes típicos, na reaprendisagem do palato sem direito a interpelações que se oponham à reinvenção da gastronomia. Em compensação, as pessoas teriam mais um dia de férias por ano. Preparavam-se para proibir em barda, para que os cânones dos timoneiros não fossem ofendidos, não cuidando de saber se para vingar a vontade de uma minoria a da imensa e silenciosa maioria fosse sacrificada.

Faltava: açucarar a existência que se tornava enfadonha e limitada. 

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