A pele parecia feita de azulejos. Continuamente deitada na manhã inaugural, vertendo os poros sobre o pressentimento do dia. As vozes eram um lampejo distante, um murmúrio que escondia palavras. A claridade embaciada pelo nevoeiro abatia-se sobre a vontade, subitamente travada contra o apelo do dia. Antes que se estilhaçasse de imodéstia, a pele cobriu-se com as páginas que iam atravessar o dia.
Sem contar, a rua incidental amealhou uns instantes. Distraído, quase entrou em choque frontal com um homem que coincidiu na esquina. Limitaram os danos a um breve encosto e ao esgar de desprazer do homem apressado, que a seguir sacudiu a gabardine das impurezas. Não se incomodou. Instintivamente recuara o olhar, notando como o outro sacudiu a gabardine, mas depressa firmou o olhar para o horizonte. A desimportância das coisas assim obrigava.
Era no horizonte que repousava o momentâneo encantamento. O horizonte tinha várias camadas trespassadas por diferentes espessuras de neblina, umas mais densas, outras mais finas, como se tivesse armado num bolo mármore. Às diferentes camadas correspondiam diferentes luzes. Um pressentimento ecoava nas entranhas: as unhas de criaturas sem identidade soltavam-se dos interstícios da neblina, penetrando na carne das pessoas que iam na direção do horizonte, mas as pessoas continuavam impavidamente a caminhar até que se fundiam com o horizonte. Não parecia que estivessem a diluir-se no fio do horizonte. Acreditou que à medida que a sua estatura se apequenava na proximidade do horizonte, elas abrigavam os horizonte na sua algibeira.
Também não tinha importância, a especulação. Ele não ia para o horizonte. Se fosse um elétrico com placa indicativa do destino, o que seria visto pelas outras pessoas? Não sabia. Saiu de casa e não sabia para onde ia. Apenas apetecia sair de casa, respirar o frescor da manhã, endurecer os azulejos da pele expondo-os à fria temperatura que inaugurava o dia. Não estava agasalhado a preceito, mas foi de propósito. Um amigo de longa data, nascido em terras gélidas, não se cansava de apregoar que o frio conserva.
E ele, esperançado no vagaroso amadurecer, apostando em prolongar a vida até onde a pudesse viver com vida, quase arriscando assegurar que se tudo corresse a preceito um dia destes seria nonagenário, emprestou o corpo desprotegido ao frio da alvorada. A pele endurentada era a muralha de que precisava.
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