(Crónica frívola, ao jeito daquele cronista do Expresso que é catedrático em banalidades e tirou a especialidade em assuntos mundanos)
E se uma mulher que tem convivência íntima com um homem dele exigir a rapadura completa das pilosidades corporais, sob pena de uma greve de sexo ou afim – ou, numa situação limite, sob pena de cessar a convivência íntima: é uma intolerável intromissão na liberdade do homem, ou à mulher deve ser atendida a pretensão para não a indispor perante tão abundante camada de pelos?
Poderia um relativista começar por relativizar os pressupostos. Diria, o relativista: depende da camada de pilosidades detida pelo homem em causa, pois não será o mesmo sacrifício lidar com abundante cobertura capilar de uma ponta à outra, ou com um homem que é moderado no usufruto dos pelos que apenas disfarçam partes da nudez. Talvez o relativista continuasse a relativizar, advertindo que será difícil estabelecer leis gerais sobre o assunto, pois as mulheres podem ter diferentes padrões quanto à tolerância da cobertura capilar dos corpos dos seus parceiros.
(O(a) leitor(a) terá reparado que o relativista se esqueceu de continuar na senda da relativização ao pressupor uma relação heterossexual, o que pode representar uma fragilidade do seu raciocínio. Se a relação for homossexual, todas as questões colocadas por este assunto candente se aplicam, como diriam os juristas, mutatis mutandis.)
Este é um dilema que convoca a Filosofia. Ou, se pedirmos de empréstimo conceitos ao Direito, é uma questão de extremas. Os limites de duas liberdades pessoais entram em choque frontal se houver uma incompatibilidade sobre a estética capilar do corpo do homem. A mulher invoca o desconforto ao desbastar abundantes pilosidades. Dirá que lhe causa desprazer a intimidade com um homem que seja desta laia, a menos que ele aceite reservar lugar num gabinete de estética e proceder à periódica depilação (ou a sistemática e mais duradoura depilação, se quiser matar o assunto pela raiz e fazer a vontade à parceira).
O homem pode recusar o rogo da parceira se ajuizar que há uma adulteração da morfologia e que a insistência (ou a simples invocação singular, se tiver menos paciência) em se livrar da cobertura capilar que afeia o corpo se intromete na sua esfera individual. Se for ativista das causas em nome próprio, ou se apenas quiser disfarçar a preguiça para desmatar pelos abundantes, virará o jogo do avesso. Socorrer-se-á do paradigma da igualdade de géneros, em parceria com outro clamor retirado do contemporaneamente aceitável: e a seu favor reivindicará a liberdade de expressão corporal para travar o assédio da sua parceira.
Se a divergência for levada aos limites, e dela resultarem dois teimosos cada vez mais distantes um do outro, a convivência será rescindida por assuntos de somenos importância (concordarão muitos, mas não os envolvidos no litígio). Os dois interesses não são sopesados. Se a mulher ajuizar que o seu desprazer pesa mais do que a liberdade corporal do homem, e se este considerar inaceitável a insistência, a resolução das coutadas pode trazer o afastamento entre os parceiros – que deixarão de o ser. Mas há outro ângulo de análise: a obstinação do homem pode ser entendida como uma intrusão no bem-estar da mulher, que assim legitimará a recusa em manter a intimidade entre ambos. O Estado socialista devia nomear um(a) Provedor(a) para estas demandas.
A culpa é da natureza, que dotou alguns homens de uma cobertura capilar que os aproxima dos seus antecessores biológicos. Se um homem destes tiver um choque frontal com uma mulher sensível à extravagância de pilosidades corporais, não se lhe afigura bom fado. Como rematam os jurisconsultos, na sua edificante missão da interpretação de litígios, “salvo melhor opinião”.
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