“(...) [A] União Europeia pode orgulhar-se de exercer uma forma de poder que não tem antecedentes na história. (...) Como um tutor cheio de bondade, preocupa-se com a nossa saúde, com o nosso saber-viver e com a nossa moral. Só teve esta ideia para nos dar a conhecer o que é bom para nós; aos seus olhos, estamos muito desamparados e somos muito imaturos. É por isso que temos necessidade de que tomem conta de nós, e nos reeduquem a sério.”
Hans Magnus Enzensberger, O Afável Monstro de Bruxelas ou a Europa sob Tutela, Relógio d’Água, 2012.
É como se estivesse a fazer contrabando, o euro-entusiasta todavia crítico que não se esconde das interrogações: e se fôssemos desobedientes, organizando brigadas para fazerem festins quando um punhado de cidadãos desalinhasse dos compêndios moralistas e exercesse a sua independência? E se não capitulássemos perante a tutela de engenheiros sociais que traduzem tiranias de outrora por suaves modalidades que ditam comportamentos? E se percebêssemos que o verbo “ditar” cauciona os seus fautores como aqueles que ditam, os ditadores modernos?
Foi para este ativismo regulatório que foi inventada a Europa política que nos rege? É esta militância educadora do bem comum, instruindo o cidadão (o bom cidadão) pelos caminhos certos, compatível com a categórica certeza de neoliberalismo que dizem ser o ADN da Europa? Foi para esta finalidade que a Europa política se agigantou do nobre propósito da paz e do livre comércio para descer ao nanismo de um protagonismo político gorado? Um otimista europeu pode continuar a sê-lo se os arquitetos da Europa insistem em derramar sobre os súbditos todo um programa paternalista, como se tivéssemos sido deduzidos como incapazes? Onde está o mandato que a Europa não apresenta, o mandato que a habilitou a rivalizar com uma certa omnipresença divina? Onde está a procuração passada para a Europa cuidar tão diligentemente de nós, uma alma mater apenas existente na ilusória presciência dos seus arquitetos?
As interrogações podiam continuar. A reeducação transborda as gerações e começa a ser uma ponte sem portagem que as atravessa perante a sua inação, educadas para estarem acostumadas. Como uma voz tonitruante que deixou de incomodar a plangência do pensamento porque fomos instruídos à habituação dessa voz. Os decibéis continuam a povoar o pensamento, mas já estamos anestesiados. A Europa com pretensões agigantar-se-á, tentando elevar-se do pequeno palco em que se situa, montando nos tacões que fingem um palco com visibilidade: dir-se-á que as doses não homeopáticas de anestesia nos livram das dores do mundo que não nos competem. Intui-se a exigência de um agradecimento, como se nós, em pose laudatória, condecorássemos a Europa que quer aparecer na geografia da política à custa da nossa apatia.
Esta Europa, aconselhadora, eufemisticamente intrusiva, trazendo o cidadão pela trela benevolente de uma constelação de direitos (alguns fátuos), é a nossa maestra. Foi-nos extirpada a liberdade criativa, pautamo-nos pelos manuais de instruções, de natureza e calibre plural, que nos ensinam o que cantar, como declamar, como apurar as artes que nos continuam a educar, o que não fazer. Os espíritos livres podem ousar um desfile interminável de interrogações que podiam acossar a Europa, deixá-la sobressaltada pela ausência de resposta ou pela honestidade das respostas embaraçosas. A Europa substitui-nos no usufruto de uma cidadania ativa: pensa por nós, decide por nós, comenta por nós, recomenda a esmo (adulterando recomendações em comandos que não convém desligar), cinzela comportamentos antes que tenhamos o topete de colocar os cotovelos em cima da mesa, palitar os dentes no fim da refeição, arrotar como sinal de aprovação da refeição oferecida pelo anfitrião (ah!, perdão: isso é em alguns países árabes e em partes da China), despe-nos de vícios todavia alimentados pela hipocrisia dos Estados – ainda está em falta um código de conduta para o sexo, mas a Europa vai a tempo de publicar o seu kamasutra, não perdemos pela demora.
A Europa dita, conversa, educa, orienta, aconselha (com efeitos desejavelmente imperativos). A Europa infantiliza-nos e nós, passivamente, aderimos à indiferença, tutelados com a conivência do silêncio, pois fomos convencidos que é melhor haver quem pense por nós. E se, ao deixarmos que a Europa pense por nós, não percebemos a menorização cidadã, somos os primeiros a caucionar uma Europa intervencionista, adestradora de comportamentos, zeladora de padrões morais, uma Europa que percorre as nossas veias sem darmos conta, uma Europa castradora. Somos cúmplices desta Europa, pese embora não tenhamos nela depositado um mandato para engenhar os códigos de conduta e de pertença que perfumam a nossa bulimia cidadã e engordam uma máquina burocrática que nos dispensar de sermos os indivíduos autónomos que desaprendemos de ser.
No cortejo dos amanhãs que ainda escondem a vocação do chão que haverá de ser pisado, esta Europa transbordou o seu mandato. Ela é necessária para um punhado de funcionários que precisa deste cerco para fazerem prova de vida, para costurarem as bainhas de uma Europa diligentemente arquiteta que procede à ablação da quimera do ser. Povoada por gente apática, a Europa alimenta-se desta apatia. No emaranhado de ordenanças e empenhada no circuito vital que perpetua a sua ostentada existência, a Europa hiperativa adulterou-se, tornou-se uma hipérbole de si mesma, como se fosse possível substituir-se ao erro histórico que são os Estados ainda por julgar por crimes contra a humanidade na sua histórica associação a uma pletora de guerras vãs. Uma Europa que se encomenda à mesma estadualidade dos Estados-réus, ou a suas versões adaptadas como se fossem o étimo de uma estadualidade reconvertida, aprisiona a liberdade nas muralhas da sua ambição.
Uma Europa assim política participa no rumo universal da desumanização. Julgava-se que, fundada na Europa resgatada aos clássicos, esta Europa tivesse aprendido com a História. Não aprendeu. E nós, também não.
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