O velho passava temporadas parado à frente do mar. (Uma temporada do velho compreendia sensivelmente meia hora, por apanhado e mal medida.) Falava com o mar, mas não se lhe ouviam palavras entoadas. O velho perguntava ao mar se arrancou vidas para as suas profundezas nos dias em que se pusera tempestuoso. Perguntava, na sede insaciável de saber de outras vidas, se o mar era o procurador de segredos de marinheiros porque os marinheiros eram passageiros do mar.
O velho esperava por uma garrafa que guardasse um papiro bolorento. Imaginava-se a descer os degraus até ao areal remexido, calcando aqui e ali para desviar do restolho que o mar pós-tempestuoso legou ao areal, até empunhar a garrafa nas mãos. Imaginava-se a levantar a garrafa para a luz do sol a trespassar, para confirmar se trazia uma mensagem resguarda da ira do mar. O velho, com a madurez que a velhice contemplava, adivinhava o malogro: se houvesse um matemático a trabalhar as probabilidades estatísticas de um náufrago ou de um marinheiro nostálgico ter deixado um segredo à curadoria do mar, o perito descobriria uma reduzida probabilidade. O velho, à medida que estava mais velho, não conseguia curar a inclinação para o esmorecimento.
Ele, que nunca desistiu de sonhos, persistia. Avançava entre os detritos avençados pelo mar e empunhava a garrafa. Contrariando as probabilidades do matemático, a garrafa puída guardava um manuscrito. Como era de esperar, não foi ligeira a empreitada de desalfandegar a rolha da garrafa. A cortiça entumecida pela temporada (muito mais demorada do que a temporada do velho) requisitou a máxima força braçal para abrir a garrafa. O velho sentia que estava a arrancar a alma mais funda da garrafa ao meter os dedos que cabiam através do gargalo, à procura do papiro esquecido. Foi com dois dedos, como tenazes, que trouxe o papel para o exterior.
Agora que tinha ido ao osso da garrafa, o velho distraiu-se do resto e deixou-a cair. A garrafa estilhaçou-se em muitos e puidamente verdes pedaços de vidro ao atingir o areal, que ainda estava asfaltado pela firmeza da maré alta da véspera. O velho resmungou à medida que a mão trémula percorria o interior dos bolsos das calças e do casaco – e não era pelo despedaçar da garrafa, que já se tornara inútil. Não encontrava os óculos. Esqueceu-os em casa. Não capitulou. Desenrolou o manuscrito, o papel aridamente estaladiço, como se pudesse esfrangalhar em mil pedaços se fosse manuseado com um módico acima da gentileza. O papel escondia umas palavras escritas a tinta entretanto decadente. Quantos anos teria a garrafa andado escondida nas funduras do mar?
O velho aproximou o papiro do olhar cansado, como se fosse o ardil para superar as fraquezas do olhar. O esforço fora em vão. Sem óculos, não conseguia entender o que estava escrito no papiro. Ao chegar a casa, foi ao encontro dos óculos com a pressa de quem tinha sido acometido pela apoplexia de perder o ar. Já com os óculos a ampliar as palavras embotadas, percebeu: o papel transcrevia uma receita de farmácia. Não fora ao osso de um náufrago habilitado numa ilha deserta, ou de um marinheiro abespinhado com angústias. Era só uma receita de farmácia, a prescrição de um punhado de medicamentos. O titular abdicou de os aviar na farmácia.
O velho supôs que a pessoa que encheu a garrafa com a receita de farmácia desistiu de viver. Era o velho, mais velho do que na véspera, a desistir da humanidade. Em sucessivos degraus.
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