27.11.23

A democracia morre por dentro?

Sleaford Mods, “West End Girls”, in https://www.youtube.com/watch?v=0nTTGw2tXWU

O partido de Geert Wilders venceu as eleições legislativas dos Países Baixos. Duplicou o número de deputados. Não é certo que Wilders consiga liderar o próximo governo: elegeu 35 deputados, mas a maioria alcança-se com 76. A pulverização partidária (dez partidos com assento parlamentar) obriga a coligações entre vários partidos, numa filigrana complexa. À data em que escrevo, Wilders quer ser primeiro-ministro mas parece difícil encontrar parceiros.

Esta eleição serve para avivar interrogações sobre a cavalgada de políticos populistas, sobretudo à direita (mas também à esquerda), e como o seu avanço eleitoral em vários países é uma ameaça existencial à democracia. A vitória de Wilders é apenas o mais recente episódio. O futuro dirá se noutros países partidos de idêntica linhagem conseguirão ser os mais votados.

O consenso interno estabelecido não coloca os partidos extremistas de direita e de esquerda em paridade quando se antecipam as ameaças que se podem abater sobre a democracia. Não vou discutir agora a equivalência entre formações partidárias colocadas nas extremidades da paisagem política, até porque esse é um tabu em Portugal, porventura por ter sido um dos últimos países europeus a desembaraçar-se de uma ditadura de extrema-direita. E porque, para o caso em apreço, pouco importa.  

O propósito deste texto é percebermos se a progressão eleitoral de partidos de extrema-direita pode hipotecar a democracia; e se, admitindo a sua matriz antidemocrática, a democracia deve tolerar esses partidos no concurso eleitoral, pressentindo que possam sepultar a democracia ao serem os mais votados.

O tratamento homogéneo destes partidos não é o critério correto. Banalizou-se a ideia de tratar todos por junto, como se fossem todos iguais. Existem diferenças entre eles, todavia. Se estivermos atentos aos programas políticos e às declarações dos seus dirigentes, percebemos que há partidos de extrema-direita que motivam mais medo do que outros. Os que sem demora sentenciam a condenação de todos esses partidos sem exceção podem argumentar que temos de desconfiar até daqueles que parecem mais próximos dos valores da democracia, porque ninguém garante que derivem para a negação da democracia se chegarem ao poder. Não vou alinhar nesse exercício de História do futuro. O exercício é arriscado e não é aceitável, porque parte de juízos de intenção que adivinham reações futuras de outrem. E o futuro continua a encerrar uma admirável incerteza.

Aqui vão as interrogações do momento: o que dizer daqueles partidos de extrema-direita que não se escondem em truques de retórica, os partidos que são manifestamente antidemocráticos? Se se posicionam contra a democracia, deve a democracia aceitá-los no sistema político e no jogo eleitoral? É legítimo excluí-los dos atos eleitorais com medo que possam conquistar mais votos, reconhecendo que o seu sucesso eleitoral pode determinar a exaustão da democracia? Os partidos que não escondem a vocação autoritária (ou até totalitária) devem ser admitidos no sistema político, se eles podem erodir a democracia desde o interior? Não será um exercício autofágico, pessoas livres e tolerantes aplicarem uma dose de tolerância (por minimalista que seja) aos que não participam dessa tolerância?

Estas interrogações lançam um desafio existencial à democracia. Não escondo o receio que estes partidos possam destruí-la a partir de dentro; no fundo, eles é que atiram um desafio existencial à democracia. Temo que o experimentalismo – esperar para ver como estes partidos se comportam quando e se assumirem responsabilidades governativas – possa causar uma doença irrecuperável que mate a democracia a partir do interior. Ao mesmo tempo, pergunto-me se um democrata pode excluir certos atores da democracia, mesmo que argumente que tem a certeza (e de que podemos ter certeza, afinal?) que esses atores se aprestam a minar os alicerces da democracia. Se a democracia, geneticamente tolerante, excluir da paisagem partidária, e do acesso a eleições, um partido que constitua uma ameaça à democracia, não é uma contradição de termos?

A contradição é insanável. Uma democracia que restringir o acesso de partidos extremistas a direitos enraizados no sistema político, contraria-se a si mesma. Uma democracia desta natureza corre o risco de fortalecer os que condena à clandestinidade. Aumentando o potencial de contestação, alimentando tumultos graves que desassossegam o tecido social. Agravando o risco de golpes que terminem violentamente com o regime democrático.

A estes argumentos junto outro: depois de admitir estes partidos no processo eleitoral, e depois de progressivamente terem vindo a conquistar mais eleitorado, interromper o direito de concorrerem a eleições, ou (mais drasticamente) ilegalizá-los, condena este eleitorado a uma divisão clandestina da sociedade. Esses eleitores são desautorizados nas suas escolhas, o que será tão mais grave quanto maior for a franja do eleitorado seduzido pela extrema-direita. Não há eleitores de primeira e de segunda, sendo inaceitável a arrogância intelectual de quem desdenha dos eleitores que votam na extrema-direita. Tornar estes eleitores párias não é próprio de quem reivindica um lugar cimeiro no exercício da tolerância. Sem contar com a probabilidade de esporear ânimos e exacerbar reações, tornando-se perigosamente vizinhos da violência. 

As democracias vivem aprisionadas neste labirinto. Como democracias, não negam o direito de participação aos que não se regem pelos valores democráticos. À medida que o sucesso eleitoral destes partidos hasteia o temor de que a extrema-direita possa liquidar a democracia por dentro, levanta-se um clamor favorável à restrição de direitos políticos a esses partidos. 

Duvido que uma democracia seja democrática se banir os radicais da dialética política típica da democracia. Arriscamos uma tamanha descapitalização da democracia? Temos a lucidez de perceber os efeitos contraproducentes: de como podemos, na defesa tão vigilante da democracia, contribuir involuntariamente para a sua degradação?

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