20.11.23

Pobre primeiro-ministro, não tem amigos

Tv on the Radio, “Happy Idiot”, in https://www.youtube.com/watch?v=OaKVy-FlaUA

(Faz de conta que este é um texto ficcional – e é até capaz de ser)

Pedir desculpa não é para qualquer um. Costuma-se dizer que quanto mais poderoso se sentir alguém, menor é a propensão para pedir desculpa quando há lugar a um pedido de desculpa. Se alguém, poderoso, chega ao nosso conhecimento a pedinchar desculpa, ou é a crença popular que fica desmentida, ou fica atestado que a personagem deixou de estar investida em poder.  

Há as desculpas genuínas e as que são encenadas. As desculpas como expiação, um meio de obter a redenção (para não onerar as dores de consciência) e as desculpas como pretexto para cobrir um fingimento. Há desculpas que são devidas e outras que não encontram paradeiro, deixando atónitos os que delas são recetores. Desculpas proclamadas em cima de um manto de humildade, que pode ser espontâneo ou apenas uma farsa. Desculpas que são desculpas e outras que são outra coisa qualquer, uma diversão no meio de um tumulto sísmico que tudo desarruma.

Há primeiros-ministros que aparecem como se estivessem num confessionário de igreja, manifestando o arrependimento por terem cultivado certas amizades. E peroram sobre o lugar isolado do governante que, por o ser, não tem – não pode ter – amigos. É um exercício pungente de um homem que subitamente acorda para o mundo, olha à sua volta, e vê a lucidez devolver o bumerangue de uma terrível solidão. Um homem que viu atraiçoada a confiança por alguns dos que eram próximos (não se fale de amigos, em retrospetiva) e tem o ato pungente de, em público exibicionismo, retirar confiança a essas amizades. São amizades destruídas pelo oportunismo dos amigos do primeiro-ministro que, em usufruto desse privilégio, quiseram retirar proveitos materiais em causa própria, deixando o primeiro-ministro à mercê do abespinhado estado da nação. E fá-lo aos olhos insaciáveis do público que nutre estes enredos, como se demandasse no público o procurador da sua angústia, suplicando-lhe que consinta o arrependimento.

Um primeiro-ministro não pode ter amigos – refletiu, numa reflexão toscamente filosófica, o primeiro-ministro. É terrivelmente injusto: um primeiro-ministro não se pode despojar das amizades para que não sobrem dúvidas sobre a sua lisura (e a dos amigos, se não tiverem a noção de que não devem confundir o amigo com o cargo). Um primeiro-ministro é uma pessoa, é gregário: mas o primeiro-ministro não tem ninguém com quem ir a um restaurante, ou ao cinema, ou a um concerto; o primeiro-ministro, que decretou a sua solidão em direto para a televisão, não pode ter vida social, não pode receber convivas em casa nem corresponder a convites para ir jantar a casa de amigos (porque deixou de os ter). 

Só que um primeiro-ministro não pode perder a compostura e anunciar em público, como fazem os influenciersque esparramam toda a sua vida nos olhos públicos, que o amigo deixou de o ser, só para receber a bênção dos desatentos cidadãos que se contentam com pouco e estão apenas a dois dedos de distância de serem aldrabados. E mesmo que seja verídico, mesmo que o primeiro-ministro não tenha tolerado a traição de amigos do peito, o resto do país dispensa saber quem é amigo do primeiro-ministro e quem deixou de o ser. 

Um primeiro-ministro continua a ter direito à privacidade. Continua a ter o dever de nos poupar ao labirinto da sua intimidade. Um dia destes, um primeiro-ministro que se divorcie vem enxaguar as mágoas em declarações solenes aos olhos das câmaras da televisão e do olhar meio-inquisitivo, meio-desagradavelmente intrusivo, dos súbditos. Para os que no público quiserem participar como juízes num tribunal de família, julguem ou perdoem o primeiro-ministro. 

Ele há lá democracia mais pura quando o primeiro-ministro, deixando de ter amigos, aparece compungido a pedir o dote da absolvição aos súbditos?

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