Já devia ter deixado de ser assunto: sua excelência, o “alto magistrado da nação”, muito certamente por defeito de feitio, foi o próprio arquiteto da banalização do (seu) cargo.
(É, todavia, prematuro estender as consequências para memória futura: o estilo das presidências é permeável ao cunho pessoal do titular do cargo. E como não há notícia do futuro inquilino do palácio de Belém…)
A opção pela proximidade das pessoas; a retórica dos afetos (inteligentemente usada durante a pandemia, quando o confinamento expôs a fragilidade emocional de muitos); a verborreia comentadora, como se ainda andasse a comentar numa televisão contra um estipêndio; a pose catedrática que o levou a explicar desde as mundanidades aos altos assuntos do Estado e da ordem internacional como se estivesse a ensinar às criancinhas na escola – tudo contribuiu para um estilo presidencial trespassado pela hiperatividade; pelas poses desbragadas (quem se pode esquecer do cumprimento ao Papa, quase arrancando a sua mão? Ou do comentário diário em fato-de-banho, durante as férias?); por uma comunicação cacofónica que, sem surpresa, tropeçou em várias gafes; pelo permanente acompanhamento de jornalistas e câmaras da televisão, como se todas – ou quase – as atividades de sua excelência tivessem de ficar documentadas numa espécie de arquivo feito em direto (ou, se quiséssemos ser verrinosos, naquilo que se poderia apodar de “presidência Big Brother” – pois se até tivemos direito a testemunhar o desnudar parcial de sua excelência quando foi vacinado contra a COVID-19).
O recente episódio do esgrima argumentativo com o embaixador da Palestina é só mais um episódio para a saga de uma presidência desastrada. Marcelo começou por estar mal porque não sabe do seu lugar institucional, sendo ele próprio o responsável por entorses protocolares: desde quando um embaixador é o interlocutor de um presidente da república? Marcelo voltou a cair no pecado da incontinência verbal. No diálogo com o embaixador, esteve mal. Primeiro, porque ainda existe ministro dos negócios estrangeiros e, a menos que o sistema político tenha mudado, é o governo que define a política externa. Segundo – e passando por cima da separação de poderes uma vez mais omitida pelo presidente – num tema tão sensível, onde a polarização ferve nas veias ateadas por ódio ou facciosismo, falar como falou expôs sua excelência à crítica gratuita mas, no entanto, fundamentada. Não sugiro que o presidente não possa ser criticado; não deve é sentar-se tão depressa no “lugar do morto” e ficar exposto à crítica que, a páginas tantas, já se mistura com um certo tom condescendente (as pessoas já lhe vão creditando o devido desconto).
Como se não fosse suficiente o exposto, Marcelo teve de vir para as câmaras e microfones justificar o que disse. Sem entender que o ato já não tinha emenda (a não ser, talvez, um pedido de desculpas pela incontinência verbal), ficou pior na procura de redenção. Marcelo quis explicar o que só a sua hiperatividade consegue explicar. Quem se desdobra em justificativas depressa morde a língua ao escorregar em material potencialmente contraditório e acaba refém da falta de credibilidade.
Poder-se-ia dizer, em abono de Marcelo, que faz por aumentar a sindicância junto dos cidadãos. Fosse outro o presidente e primava pelo silêncio, puxando lustro aos galões presidenciais que legitimariam a dispensa de justificações. E mesmo a alguém que não é sensível a institucionalismos (o abaixo assinado, para que conste) causa uma certa confusão o excesso de humildade política de quem ocupa o lugar cimeiro dos órgãos de soberania. Aos muitos défices de democracia junta-se um obnóxio, e apenas aparente, excedente democrático de sua excelência. Juntando mais ingredientes à banalização do cargo.
Marcelo, imparável, esforça-se por cavar um pouco mais a cova do risível. Foi confrontado na rua por manifestantes pró-Palestina que pediram explicações, em direto para as televisões, como não podia deixar de ser. A certa altura, um dos populares advertiu sua excelência: “o senhor fala de mais, o senhor fala de mais”. E senti um misto de regozijo (porque Marcelo pôs-se a jeito) e de lamento: se isto não é a prova cavada da banalização da função presidencial, não sei o que se será.
Os adeptos da proximidade dos atores políticos aos cidadãos devem estar extáticos. Eu temo que isto não seja um défice democrático virado do avesso. Mais parece a trivialização da política, um falso conforto da “gente comum”, a “arraia-miúda”, (como Marcelo disse num dez de junho, citando Fernão Lopes), que agora acha que está a dois dedos de conversa dos mandantes e que até os podem pôr em sentido – outra vez: em direto para a televisão.
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