24.11.23

Conto de natal antecipado (pois se em tempos houve um estadista que antecipou o natal para novembro)

The Comet Is Coming, “Timewave Zero”, in https://www.youtube.com/watch?v=T5epgWNEdzQ

Uma poeira lisérgica levantou voo e, empurrada pelos ventos contrariamente ao habitual de Sul, aterrou no Ártico. Por proibição decretada pelo partido ecologista (no governo), as renas a sério deixaram de sair dos estábulos para cumprirem a função natalícia. O partido do governo ainda tentou proibir a tradição, mas recuou: até seus votantes se insurgiram contra a régua e o esquadro tão impecavelmente corretos dos ecologistas e logo a seguir uma startup propôs a substituição de renas de carne e osso por renas robotizadas. O desmantelamento do capitalismo apenas ficava adiado.

(A startup tinha adivinhado que os altamente esclarecidos do governo iam proibir os voos das renas durante todo o ano e começaram a fabricar renas robotizadas.) 

Quando as poeiras lisérgicas assentaram no solo, uma súbita reação química fez desabrochar, a destempo, a flora local que já tinha hibernado à espera do Inverno. As renas robotizadas, entretanto reunidas em sindicato, não conseguiam aguentar o peso das armadura e dos circuitos integrados. Eram vítimas da poeira lisérgica. Algumas foram apanhadas de rabo para o ar a inalar flores surpreendentemente desabrochadas no dealbar do Inverno. Outras levantaram voo sem autorização da torre de controlo e da direção-geral dos corpos robotizadas, sendo ouvidas a anunciar que iam fazer uma residência artística nas Maurícias. 

A direção-geral das atividades lúdicas, subdireção do Natal e de outras atividades lunáticas, perdeu o Norte (literalmente) e nacionalizou a lucidez – e nem notificou o comité central, para desespero dos costumes tirados a milímetro no estirador dos esclarecidos. As pessoas eram livres para a tresloucura, para dizerem poemas malditos (e para dizerem poemas mal ditos, pois viva a liberdade criativa!) para fumarem todo o tipo de tabaco e voltarem a comer rena (dantes de carne e osso), sendo autorizado o palitar de dentes no fim da refeição. Os fetiches foram readmitidos à circulação e até os velhinhos efetuavam pagamentos em cripto-moedas. Os jovens não se excitavam com nus. De dois em dois dias, desligava-se o aquecimento central e ninguém tinha saudades do sexo, tanta a roupa em que se refugiavam. 

A lotaria tinha como prémio uma estadia compulsiva com o vocalista dos National: as pessoas acreditavam que a melancolia não era uma conjura e podiam aprender a ser quem são se mergulhassem no fundo. As crianças, de repente, saltavam de meados de dezembro para três de janeiro. E de tanto janeirarem a desafio, nem se lembravam do natal. Os graúdos – um contingente já numeroso – silenciavam o agradecimento, não fossem os mais pequenos lembrar que se esqueceram do natal. 

Todos andavam exultantes, um sorriso tão radioso como a antítese de horas solares que aquelas paragens (não) conheciam. No dia 24 de dezembro, à hora do jantar, não se comia rena nem ovas de esturjão e as garrafas do melhor vodca permaneciam escondidas em caves mentais. Todos suspendiam a respiração, uma demorada apneia para ver se apressavam o lançar de âncora no 26 de dezembro. Os posters do camarada Chávez, esse exemplo de democracia de elevada intensidade, tinham sido cobertos com posters de elfos nus. Já não havia suicídios há cinquenta e seis dias (com todas as desvantagens ecológicas associadas). O teatro virou-se do avesso: a audiência passou para o palco e os atores ficaram em casa, com medo.

Os habitantes locais inspiravam o ar frio do Inverno estabelecido, à saída do rápido mergulho nas águas gélidas do lago depois de quinze minutos de sauna, e diziam, em coro: “agora está tudo bem”.

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