21.11.23

Hipérbole

Massive Attack, “Girl I Love You” (live at Fuji Rock 2010), in https://www.youtube.com/watch?v=lBu3jjYMXxs

Volto ao êxtase das horas a vau, sem medo dos naufrágios: não são em vão os corpos como memória. A mnemónica que se antecipa ao futuro não encoleriza. Se não fossem os contratempos, ninguém ovacionava as proezas empilhadas. 

O rosto permanece escondido. Torna-se anónimo. Impede a revelação de um nome. Não é a visibilidade dos nomes e dos rostos que se oferece de caução ao menear do mundo. Se houvesse preces pelos desacontecimentos, talvez as religiões estivessem habitadas. Talvez fossem a húbris que convoca almas inquietas. Se o futuro deixasse de ser sobre o futuro – se não fôssemos insaciáveis a querer digerir o que desconhecemos –, não seríamos apóstatas de nós mesmos. Não seríamos refugiados num ermo sem paradeiro, um lugar todavia desejado por não nos deixar à mercê dos avulsos juízes que se debatem com vidas que não são as deles. Não seríamos julgados por contumácia; e nós, em todo o caso, estaríamos orgulhosos de essa ser a acusação. 

Seria como habitar uma cápsula em que tudo se resumia à frugalidade do espaço, à frugalidade das palavras que cabem numa estrofe. Podiam dizer tratar-se de covardia. De um ensimesmar catatónico, feito de miragens em barda. Podiam acusar esse mundo privativo de ser uma alucinação; e podiam denunciar o exílio interior como pretexto para a evasão do mundo, de como ele é feito de realidade. Podiam repescar um adjetivo de empréstimo à língua de trapos que (des)embeleza solenidades: incontornável (proclamado sílaba a sílaba, para a ênfase não deixar ninguém sonolento, assim como um camartelo da razão que se esmaga sobre os indigentes). 

Não importa. Nós comandamos o coração do relógio por que nos regemos. Somos nós que evitamos os procuradores das coisas inevitáveis, os que legiferam códigos de conduta de adesão irremediável, os que se abastecem da nossa apatia se formos apáticos, os piratas que nos esvaziam de ser. Não é esta a gramática que corre nas nossas artérias. É o salto quântico, a tomada de posse do extático, o enlevo pelas artes que não se colam a doutrinas, as vozes que não seguem compêndios, uma miríade de estrofes que substituem divindades, o mar sentado onde ditamos as mãos para depois as trazermos ao rosto assim tornado luminoso. 

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