- Ora: se tudo fosse assim altar, os outros só queriam ser como nós.
Era um mote. Ouvia-o com a atenção que podia arregimentar. Ouvia-o como se estivesse a escandir as palavras que ele bolçava vertiginosamente. O encantamento pela idiossincrasia era pueril e devastador. Não era capaz de anotar dois ou três defeitos de feitio que pudessem entrar num compêndio de sociologia da nação. A nação era deus.
- Oxalá pudéssemos deixar em herança só um pedaço da nossa História.
Interpelava-o: e essa História é só composta por episódios exemplares, ou podemos considerá-la uma epístola de equívocos?
(E com isto não entrava no intelectualmente obsceno exercício de apurar as culpas de gerações anteriores no momento presente, como se a retroatividade se vestisse do avesso e se colasse a nós, obrigados a responder pelos crimes antepassados.)
- O tempo percute a nossa grandeza. Ser humilde é uma manifestação de grandeza. A mais difícil de todas. Quando nos deixámos ficar pequenos, por ablação do império, soubemos ser a estrofe que sintetiza a modernidade. Mas o passado não se apaga. É de lá que vem o verso egrégio que inunda o hino.
Não conseguia entender como aplainava a sintomática necessidade de futuro projetando-o através de uma osmose do passado. Esse passado estava repleto de equimoses. Era como se todo o futuro, aliás, todos os tempos, estivessem sitiados pelo peso do passado que se arqueava imperativamente sobre os tempos múltiplos. De acordo com ele, o passado arqueava-se sobre todos os nacionais, mesmo aqueles que recusavam o sentido heroico da História. Para mim, isto não era uma mundivisão. Era facciosismo que encarnava no devir que vinha do pretérito: todo aquele encantamento pelo húmus pátrio confundia-se com uma apologia fantasiosa, quase como se lhe perguntassem porquê e ele se limitasse a responder “porque sim”.
- Denuncio o verso “Daqui houve nome Portugal” (mas ele não sabia o nome do poeta: apanhado em falso, admitiu o lugar-comum: seria um heterónimo do Pessoa): nem é daqui que o nome se projeta, tantos os mundos que os antepassados deixaram em legado ao mundo; e o nome Portugal é uma marca registada dos tempos imemoriais, um património que alcança a intemporalidade pelo fruto que ficou para a modernidade do mundo.
Parecia-me uma estultícia este saudosismo (se ele soubesse do Pessoa, logo completaria a estrofe: “saudades do futuro”). Gravitava numa órbita infantil, acreditando na lotaria dos outros em comparação com a lombada messiânica que se inscrevia no nome do país. Um dia, não tinha acordado com a paciência ativada e sugeri que ele devia chamar Nicelândia ao país por que se ajoelhava num altar perene.
Nunca mais me falou.
Sem comentários:
Enviar um comentário