Um programa de televisão sai à rua para interpelar o cidadão sobre o conhecimento do idioma e os trinta segundos de fama transformam-se em trinta segundos de vergonha: ele há muitos cidadãos que não sabem a resposta certa e outros quase tantos que hesitam e atiram para o ar a resposta por acaso certa.
As pessoas aspiram aos seus “cinco minutos de fama” – que não duram tanto tempo, que o tempo nas televisões é dispendioso e nenhum anónimo tem direito a tanto tempo de antena. Mas as pessoas procuram aquele momento redentor em que irrompem do anonimato e passam a ser, ainda que numa medida efémera, rostos públicos e nomes com nome.
O problema, é que as pessoas podem sair do anonimato pelas piores razões. É o que acontece quando pastoreiam a ignorância em público, ficando a jeito da chacota alheia (ainda que os que escarnecem de si não possam dizer que não podiam estar na figura risível que serve para troçarem dos outros). A sociedade que ensina as múltiplas dimensões da democracia não se cansa de apregoar o direito à igualdade. A visibilidade pública já não é um exclusivo dos “notáveis” que usavam privilégios para terem a seu favor o usufruto de um tempo desproporcionado na praça pública.
Os juízes implacáveis, que fazem abater sobre o ingénuo ignorante a sanha dos críticos sem contemplação, dirão que os tempos marcados pela miragem da igualdade são aziagos para os publicamente ignorantes. Ninguém gosta de ver dedos inquisidores apontados na sua direção, proclamando o desconhecimento avivado aos olhos de toda a gente. Ninguém gostará de subir a palco para ser o sujeito do escárnio dos outros. Ninguém gosta de ver a pele tingida pela humilhação. E, todavia, o cidadão subitamente desanónimo arrisca a resposta à frente da câmara algoz que o filma; arrisca a peregrinação da ignorância que mostra a sua dimensão tremendamente humana, apenas humana.
O que arruma a perplexidade não é tanto a propensão para falar sobre o que não se sabe – ele há muitos comentadores públicos que falam de cátedra, desfilando pura ignorância sobre o assunto comentado. A maior perplexidade é a que conta os tolos que chacoteiam o erro do outro, como se o erro não fosse intrínseco à (também) sua própria natureza.
O programa de televisão desfila o público desconhecimento do idioma. E depois? Saibamos, ao menos, aprender com os erros em barda que são a prova viva das disfuncionalidades idiomáticas do cidadão.
As obras feitas dão um bocado dos seus autores. Quando as contemplamos, é como se um pouco dos autores entrasse no nosso olhar. Passamos a ser, um pouco, o que o autor trouxe àquela obra. Ficamos com a noção que somos cada vez menos ilhas.
Amanhecemos com o dia por diante e não sabemos como dele vamos ser mecenas. Talvez dando ao dia uma parte de nós. Nem que o dia se resuma a sermos nós. Neste entrecruzar, confundimo-nos com o dia de que somos tutores. Ou talvez seja o dia que se completa como nosso procurador.
Quando somos forasteiros, o processo de fusão é semelhante. Percorremos lugares, ouvimos idiomas que não conhecemos, conhecemos pessoas que não constavam do inventário dos conhecimentos, experimentamos usos locais, aprendemos a gastronomia, interiorizamos a História e a cultura e sentimo-nos menos forasteiros. Sentimos mais conhecimento. Trazemos desses lugares pertenças e vestígios de identidades que se somam à identidade que em nós de conforma. Nunca chegamos a ser forasteiros.
Ao lançarmos as amarras a um cais, não prescindimos do nomadismo. Podemos ser nómadas mesmo ser sair de casa: empreendemos longínquas demandas mentais que nos levam a lugares remotos, participamos à distância nas idiossincrasias locais, fingimos desidentidades. As viagens mentais impedem que sejamos ilhas, mesmo quando alguém ostensivamente afirma essa despertença plúrima.
É um mosaico de rostos, palavras, paisagens, músicas, contratempos, corpos, árvores, apeadeiros, palcos, poemas, filmes, desavenças, confortos, sonhos ou pesadelos, marés, miradouros, insónias, desafogos de alma. Uma clepsidra que se enche de fragmentos dispersos que não precisam de cimento para serem uma colagem. Um contexto, as circunstâncias que se conjugam a favor ou que conspiram por um sobressalto. Um tempo que pode não rimar com um modo, ou um modo que desmaninha o seu próprio tempo. O vinho da casa, artesanal e singular, resgatado à orfandade, à espera de ser servido na mnemónica do mapa escondido.
Roíam as unhas. Militantemente. Ou escandalosamente, consoante os olhares e as sensibilidades ultrajadas. Não interessava tanto o roer de unhas como os limoeiros em ano excecional, os frutos superando a folhagem de tal modo que o amarelo dos frutos se sobrepunha ao verde da folhagem. O xisto era longe. Os socalcos também. O rio oferecia o seu caudal à espera de contemplação. O ar inspirado era um nómada que se amotinava contra a duração do tempo. Viagens, contadas pelos dedos – os novos mandamentos mandam calcular a pegada ecológica e não querem ser sobressaltados por pesadelos protagonizados pelo Green Peace nem querem ser assombrados por discursos da jovem da moda. Roíam as unhas para não ficarem iracundos com as doenças do mundo. Diziam: é exagero teu, o mundo nunca esteve tão bem. E tu: o mundo, nunca esteve tão mal. (Fizeste questão de enxertar a vírgula, que faz toda a diferença.) Os miúdos celebram a saída das aulas. Celebram duplamente: amanhã é feriado e depois só há mais um dia até ao fim de semana. Aprenderam com o radialista com elevada consciência de classe que bendiz o fim de semana quando os dias da semana se encurtam na sua véspera: todo o descanso é merecido, o trabalho (será que conhece Agostinho da Silva?) soa a insulto à dignidade das pessoas. Trabalhar, só porque tem de ser. Aposta-se que os miúdos nunca ouviram aquele radialista, mas cedo aprenderam a lição. Na outra trincheira, os viciados na droga do trabalho. O tempo escasseia sempre, tantos os afazeres que até estavam capazes de pedir a intercessão divina pela desmultiplicação do tempo (sonham, talvez, com um dia com quarenta e três horas). Estão sempre assoberbados por trabalho. Nem têm tempo para roer as unhas, ou para apreciar a doçura que a paisagem bucólica tem para oferecer. Descansar, mesmo quando estão de férias, vai contra a linhagem do sangue. Não sabem do paradeiro do xisto, ou dos socalcos, ou das vinhas (a não ser quando se armam em escansões). Suspeitam que encontram o rio quando a colina aplana. Preferem outras dependências. E delas não se afirme que são salubres. Menos mal, não roem as unhas.
1. Uma liturgia de liberdade: é por a liberdade ser perenemente frágil que ela deve ser celebrada; é por serem esbracejados fantasmas frescos que a podem hipotecar, num retrocesso que agita pesadelos, que festejamos a liberdade; é por causa dos 48 anos amordaçados que a conquista da liberdade não pode cair no esquecimento. Celebramos a liberdade porque é um mito que cimenta a pertença a uma comunidade de valores políticos. Celebramos a liberdade porque a prezamos como esteio da comunidade política e porque temos medo do seu contrário. A emergência de forças populistas que ameaçam sequestrar a liberdade (se é que já não a sequestraram em parte) reforça o desejo de comemorar o 25 de Abril.
2. A liberdade é multidimensional. Há a liberdade política, a liberdade de pensamento, a liberdade de expressão, a liberdade para discordar. Que fique bem entendido: defenda-se a afirmação de ideias e a exposição de posições sobre um determinado assunto, mesmo que consideremos que não são defensáveis ou que distorcem a (nossa) validação dos factos. Esta advertência serve para não excluir nenhuma – insisto: nenhuma – opinião, posição e ideia sobre a interpretação da revolução de 1974, de quem a tutela e quem tem legitimidade para a celebrar.
Ser pela liberdade é também ter o direito de discordar de opiniões diferentes das nossas sem ser enjeitado pelo exercício do direito à diferença. Entre certos sectores que se julgam tutores do 25 de Abril, há quem limite a legitimidade das celebrações às diversas esquerdas presentes na paisagem política. Sobressai a tentação de acantonar “a direita” (como se a direita fosse homogénea) na desconfiança perante as conquistas de Abril. Se não o afirmam declaradamente, deixam-no nas entrelinhas: “a direita”, ou não gosta do 25 de Abril e tem saudades do Estado Novo (ou do fascismo), ou materializa dúvidas metódicas sobre a democracia inaugurada naquela data.
No Público de 17 de abril, Manuel Loff perdeu o pudor ao asseverar que “[p]or mais que tentem descafeinar a Revolução, as direitas deste país não têm motivos para querer comemorá-la. A memória da Revolução continua a irritá-las sobremaneira.” O protagonismo da extrema-direita poderá explicar a afirmação inflamada de Loff, não se soubessem de outras trovas em que o historiador é pródigo. A generalização, como todas as generalizações, contém o seu autojulgamento.
3. Logo a seguir, Loff inventaria corretamente os benefícios da revolução. Mas depois conclui que, desde Sá Carneiro a Cavaco, “(...) as direitas continuam a detestar o 25 de Abril”. Por isso, “as direitas” (louve-se o esforço em atualizar do singular para o plural) não festejam a revolução democrática. A pluralização foi contraproducente: as direitas, sem exceção, odeiam o 25 de Abril.
Não quero ser porta-voz das “direitas”. Sendo de direita e tendo nascido poucos anos antes da revolução de Abril, considero as posições de algumas esquerdas à la Loff ultrajantes. Quem encosta “as direitas”, sem distinção de pergaminhos, às cordas do antidemocrático, medra na indigência e no sectarismo. Argumentar que “as direitas continuam a detestar o 25 de Abril” é de uma gravidade que exige reparo. Primeiro, quem assim se posiciona mantém que o património genético do 25 de Abril não quadra com as diversas linhagens das direitas. Parece que os partidos de direita não são bem-vindos na casa democrática inaugurada pelo 25 de Abril. Se fosse possível interrogar diretamente Loff e afins, defenderiam que os partidos que não são de esquerda deviam ser impedidos de concorrer a eleições? Pois se esses partidos detestam – continuam a detestar – a revolução de Abril, e se a revolução é o epítome de democracia, logo são antidemocráticos. O esclarecimento ajudava a perceber o resto.
Segundo, esta posição é uma afronta a quase cinquenta anos de democracia. Há partidos de direita com responsabilidade na governação durante a era democrática. Aliás, Loff já defendeu que os próprios governos do PS (com exceção do que teve a curadoria da geringonça) não se distinguem dos governos liderados pelo PSD por governarem de acordo com as exigências do neoliberalismo. Eis a interrogação: temos vivido em democracia tutelar, semidemocracia, democracia sequestrada, ou em “democracia de baixa intensidade”?
Afinal, a direita não gosta da democracia, ou não gosta apenas (e este apenas é uma enormidade) da revolução do 25 de Abril?
4. Dirão os mais céticos, sobressaltados pelo pesadelo do “fascismo” latente, que estes são tempos de assalto à democracia. Concordo com a exclamação de Loff: “[n]os tempos que correm, poucas festas podem ter mais sentido prático!” Usando o mesmo método inquisitivo, essa é uma interrogação que deviam dirigir às personagens que sobem ao palco daqueles pesadelos: “é sua intenção des-democratizar?” Devíamos ouvir a resposta das suas bocas, para o tira-teimas.
A liberdade intrínseca das democracias liberais funda-se no respeito escrupuloso por um conjunto de valores políticos. A liberdade de pensamento e de expressão integram esse catálogo. Honra seja feita à democracia liberal que continua a dar palco à manifestação de posições que não correspondem à mitologia política adquirida. Honra lhe seja prestada, para que Loff e outros que tais continuem a ter direito a dar à estampa estas posições heterodoxas. Digo-o sem que o(a) leitor(a) apure segundas intenções nas minhas palavras, ou tente adivinhar nas entrelinhas: digo-o com a convicção de quem está nos antípodas de Loff & Cia. mas os lê com mais interesse do que autores que possam convergir com as suas ideias e posições.
O exercício significativo é imaginar o que teria sido a experiência da democracia se ela tivesse seguido a grelha de Loff & Cia. Não se diga deste exercício que é contrafactual. Não estaríamos a celebrar 50 anos de democracia no 25 de abril de 2024; estaríamos a celebrar, num qualquer dia radioso de novembro, os 35 anos de democracia, após a queda do regime político.
As ruas desalinhadas perguntavam ao sol pelas falas das pessoas. As ruas estavam desertas, não estavam habituadas. Tinham medo que as pessoas fossem procurar exílio, que uma catástrofe se tivesse abatido sobre o lugar e, entre baixas e sobreviventes, estes tivessem escolhido o nomadismo.
Era apenas uma coincidência. Um daqueles fenómenos com elevada improbabilidade estatística. As pessoas descoincidiram das ruas centrípetas. A cidade tornou-se um ilegítimo ermo e até se conseguia ouvir o ciciar das aves resistentes. Os pássaros não deram o mote para o apocalipse que podia ter acontecido se se confirmassem as baixas e os exílios involuntários dos sobreviventes. Eles pressentem as catástrofes e não havia testemunhos da agitação dos pássaros.
Nos minutos em que as ruas estiveram vazias, até o ar parecia que tinha outra linhagem. Não era pesado, não parecia sitiado pela excessiva respiração das pessoas que enxameiam as ruas. Parecia que era o ar expirado pelas pessoas que pesava na poluição, ilibando os automóveis e as fábricas. As pessoas eram o maior embaraço à qualidade do ambiente, confirmando as profecias autorrealizáveis.
As ruas, enquanto estiveram ausentes de almas, continuaram a respirar. Continuaram a olhar de longe para o mar que se estendia numa suave língua acobreada até aos cais que eram a sua embocadura na cidade. As ruas centrípetas, tão solenes na graduação das ruas protagonistas da cidade, invejavam o mar. Invejavam a languidez com que o mar se debruçava sobre o avental da cidade, quando não tempesteava. Mas também o invejavam quando o vento desassossegava, ordenando uma estrepitosa rebentação nas pedras graníticas dos cais. As ondas encapeladas encurvavam-se sobre a sua barriga, esfrangalhando-se nos cais, ecoando um fragor que as ruas centrípetas, à distância, adoravam ouvir.
No dia das ruas momentaneamente despovoadas, o mar também se ausentou das medidas habituais. Encolheu. As ruas centrípetas temiam que fosse o prenúncio de um tsunami (as ruas centrípetas são ruas que recolheram muito conhecimento ao longo da sua duração). Foi falso alarme. Os pássaros residentes nas árvores limítrofes continuavam amenos.
Quando tudo voltou a rimar com a habitualidade, não se ouvia o falar dos pássaros e as pessoas voltaram a azoar as ruas centrípetas, dando-lhes a identidade a que estavam afeitas. E o mar, inflacionado com a nortada do dia, voltou à rebentação contra as pedras graníticas dos cais.
Sob os auspícios da rebentação, as ruas protagonistas voltaram a ostentar a sua soberba.
Desamanhece o estio pendurado numa folha de calendário. Alguém foi comprar o calendário do ano que é daqui a três calendários completos. Começa a escrever furiosamente nas páginas avulsas. São juras. Acabou de comprometer esses dias, como se estivessem destinados a ser oráculos.
Nos escombros, a poeira ainda embacia o dia outrora, medindo-se a ossatura da memória. Os remédios não são cicatrizes, merecem uma segunda hipótese antes de serem condenados por prescrição. Os homens deixam-se reféns de outras combustões, atiram-se de cabeça para as beligerâncias que assanham o futuro, prometem-se aos poços da morte onde a audácia é desafiada. Em vez de conjugarem a harmonia em forma de verbo, preferem o epitáfio alinhado na mentira do tempo.
A tarde inteira lê-se na duração de um abril. Os antepassados deixaram o fermento necessário. Nós transformámo-lo na argamassa que desmente as fundações do caos. Ajeitamos os cabelos desarrumados pelo vento, sem desviarmos o olhar do mar. Somos alfândegas itinerantes que desafiam a loucura dos compêndios, como se aves tresloucadas suassem a vergonha do mundo e se encavalitassem nos despojos. Mas depois sobram as juras, as aliterações que descontam a experiência e atiram para depois, sempre para depois, os erros que não precisam de redenção. Oxalá não houvesse tempo. E nós fôssemos curadores de lugares que não obedecem a fronteiras.
As juras são escritas a tinta vermelha, a tinta feita com o sangue que fica por resgatar. Somos reféns das juras, como se precisássemos de saber da toada do futuro antes que ele seja admitido a concurso. Devíamos reservar as máquinas incansáveis para o presente. Devíamos fugir das centelhas, vigiar os lagos que espelham o Outono tardio, correr sem as molduras diligentes, até não sermos as juras que ofendem as mãos tingidas de memória. Deixamos o arrependimento vincendo na boca do copo por onde bebemos o aroma dos dias e esconjuramos as farsas sem remédio num verso arrematado ao acaso.
Sento-me no equador do pensamento. As mãos tremem, talvez o medo pelo peso de todos os ontem açambarcados à memória. Todos esses dias desvinculam-se da memória, dão-lhes carta branca para mortificar os dias constantes. Não me intimido. Sei que à medula vou buscar as forças bastantes para sofrear os vultos que dançam sobre o paradeiro da tarde.
Não são os espelhos contumazes que adormecem o medo. É o sangue que emerge desde o magma inconsciente, uma força sem nome, não datada, a única arma admitida. Digo da enseada o elogio que se ampara no lugar extático. Precisamos de paisagens que fazem parar o tempo. Ficamos extasiados a respirá-las enquanto nos esquecemos das moradas onde se aloja o demais. Por esse olhar agraciado passam os versos argutos, a descrição sumária da constelação de sentimentos que arrepia a pele.
Pelo olhar boreal desfilam as imagens que rareiam, uma denominação de origem. Do corpo se dirá que conseguia subir os socalcos sem se arquear ao cansaço. E pelos sendeiros sucessivos sentia-se a alma remoçada: o envelhecimento virava-se do avesso à medida que o olhar boreal se ensoberbecia com todos os lugares bucólicos, com a procissão de estrofes cantantes que levitavam o corpo em coreografias improváveis.
A manhã só estava ao alcance de um escol. Aos que precisam de beber todo o silêncio conjuntural que sobe pelo periscópio da manhã. Não fogem das dádivas colhidas na generosidade adjetiva. As estrofes da vida desembaraçam-se dos contratempos. A luz aviva-se, é de uma nitidez singular. Só de um olhar assim é possível ser patrono da dança de cores que se emoldura no olhar boreal.
Os violinos sussurram, depois vão num crescendo, somando-se uns aos outros. São as vozes que perfumam a nossa pele. Os versos que têm os nossos nomes, o degelo do medo. Dizes: é esta paisagem quimérica que entoa os violinos. E nós, de mãos dadas, apuramos a silhueta dos contrafortes, a paisagem rude que emudece para ouvirmos o refrão da nossa respiração. Ontem – dizes – sabíamos menos do que hoje. Por isso digo que desenvelhecemos.
Atirou a toalha ao chão, como se o chão tivesse culpa. Não fosse o chão estar a dormir e o chão teria acusado a ofensa. Mas o chão, mesmo estando a dormir, sentiu a toalha projetada contra si com uma energia vulcânica. Acordou e, importunado pela dor da toalha, esbracejou um protesto. A toalha atirada contra o chão estava encharcada. Pesava mais.
A toalha também não foi considerada quando a pessoa a atirou contra o chão. Toalha e chão não foram consultados sobre a consumação do ato de violência. A toalha, depois de aterrar no chão e ficar desarrumada a jazer no chão agredido, esboçou um sinal de protesto. Balbuciou-o, indignada. Assim como assim, a toalha acabara de ter serventia. Enxugara o enfurecido humano depois de se ter banhado. A ira podia ter arrefecido pela ação do banho. Nem assim.
A pessoa estava cercada pelo chão e pela toalha. O chão, ainda dorido, conspirou com Gaia, a deusa tutelar, para assustar o humano. Gaia inspirou fundo e abanou-se toda para remexer a terra desde as entranhas. O sismo fez tremer o chão. O chão já estava a contar, não se assustou. A pessoa meteu a fúria entre parêntesis, aterrada com o abalo telúrico. Era vingança do chão, com a intermediação de Gaia. A injustiça não podia ficar sem castigo. O tremor de terra era a resposta ao atirar da toalha ao chão.
Faltava a toalha. Despojada no chão entretanto sonoro, a toalha também estava condoída. Para afastar as dúvidas, era só calcular a energia instantaneamente gasta quando a toalha, atirada com o sobrepeso da água que absorveu do corpo da pessoa, atingiu o chão rijo. Ainda atordoada, a toalha jurou represália. Não podia recorrer a uma deusa tutelar, como fez o chão. Pensou interceder junto de Tétis: afinal, o gesto foi violento porque a toalha retinha uma quantidade de água, se não estivesse ensopada a queda no chão teria sido menos pungente.
Tétis, muito sensível à violência gratuita, aceitou a intercessão. À saída de casa, ia o homem a caminho do parque de estacionamento, Tétis fez desabar um dilúvio instantâneo, sem pré-aviso. O homem, atormentado por outros males interiores que não interessa inventariar, pensou com os seus botões: um homem já não pode atirar a toalha ao chão.
Uma colónia de misantropos fundou uma des-sociedade. Não queriam o óbito da franquia celebrada, mas não se reviam nela. Queriam ter o direito de não terem direitos; recusavam o direito de admissão no grupo estabelecido. Queriam que os deixassem ser patronos da sua própria orfandade.
A des-sociedade seria uma sociedade esvaziada por dentro. Uma despertença, por mais pretensioso que pudesse parecer. A sociedade impecavelmente organizada podia ficar sossegada: os membros da des-sociedade não se propunham liquidar a sociedade legítima, a formação de um grupo rival não estava nas suas intenções. Nem eram um grupo coeso – como bons samaritanos da misantropia, não falavam uns com os outros, não conspiravam, como grupo, contra os costumes estabelecidos.
Os misantropos não tiveram paz por muito tempo. Os procuradores da normalidade não descansaram enquanto não deram caça aos arquitetos da des-sociedade. Não quiseram compreender as suas intenções. Não aceitavam que houvesse gente tresmalhada. Essa era uma liberdade que não aceitavam. Uma vez que estavam integrados no grupo, não podiam aspirar à exclusão. A orfandade contrariava a pertença. Os procuradores da normalidade não podiam legitimar a franquia da despertença.
Os misantropos falaram uns com os outros, pela primeira vez. Não se conformavam com a exibição de poder dos tutores dos costumes estabelecidos. Protestaram contra o contrassenso da injunção. Alegaram a contradição de termos: os defensores da liberdade não a podem reprimir, nem que se sirvam de pretextos como os esgrimidos contra os confrades da des-sociedade. Estes não exigiam nada do grupo a que não queriam pertencer. A não ser que reconhecessem o direito de não serem reconhecidos como membros do grupo.
Um tribunal foi chamado a ajuizar o embargo dos confrades da des-sociedade. Sem embargo do direito à liberdade, os juízes ajuizaram que a restrição última é a intenção de despertença. O grupo não pode aceitar a orfandade dos que peticionam a sua exclusão. Temem pelo seu isolamento, pela marginalização que os desprotege. Os misantropos aprenderam que a sua liberdade termina quando exercem o direito a serem misantropos. São membros à força.
Ao tribunal, só faltou erradicar a misantropia e explicar – como quem é perito em atirar areia para os olhos – que o faria em nome da liberdade.
Primeiro era a noite – os vultos, a sombra estrutural, os pesadelos, a hibernação que escondia o desperdício, o adiamento, o sono como provérbio da fragilidade.
Primeiro eram os rostos indiferentes, as árvores sem paradeiro, os nomes sem significado, a pura especulação das almas apenas aparentemente iguais, um rio com caudal subterrâneo, um jogo de espelhos que apanha as silhuetas em falso, o ardil do fingimento.
Primeiro era a impressão de uma leveza insondável, a matéria-prima da perplexidade, as dúvidas em barda que ficavam órfãs de resposta, a angústia desalinhada nos parágrafos puídos que armadilhavam as mãos, o olhar projetado na penumbra a fazer de conta que era letrado.
Depois vinha o demais. O dia, ao início descarnado, a levantar âncora, deixando a claridade à mercê dos olhares desarmados. Os sonhos afinal poéticos, como vida paralela, um palco encenado como vela alternativa erguida no desdobramento da vida. Os rostos transformados em nomes e os estranhos que perderam essa condição. As árvores mapeadas, sem serem paisagem do anonimato. As almas desiguais sem beijarem a angústia da demagogia. Os corpos reverberados pelos espelhos sem parecerem forasteiros – e as vozes reproduzidas sem soarem às vozes dos outros.
Depois vinha a antítese do feio. As interrogações que afinal não eram órfãs, convencidas que não supõem uma resposta. A angústia sem serventia, o miradouro de onde se abarca o mundo mergulhado na sua complexa teia. As mãos opulentas com tanto mundo por saber, com tantos dias por haver. A penumbra que não diminuía o olhar.
Aprendíamos que era melhor começar pelas coisas feias, deixando as belas para depois. As almas não alinhadas participam a sua admirável autonomia. São livres, vacinadas contra os sobressaltos que afeiam o mundo de sombras e vultos que tencionam açambarcar a sua liberdade. Não protestam, não exclamam os impropérios gastos que não toleram as fragilidades do mundo exterior. Deixam os dias seguir na sua sucessão astronómica e por vezes ilógica. Elas congeminam a sua beleza interior. Participam na beleza irreparável de um dia.
Eram as arestas do dia que o separavam da inteireza. Sempre teve a ambição de arrematar os dias com a candeia da perfeição. Era uma ousadia, diziam alguns. Para outros, uma loucura.
Por lugares avulsos, demandava os apeadeiros que não tinham paradeiro. Ouvira dizer, de um velho que aparentava ser sábio, que os mapas foram a pior invenção. Eram piores do que prisões mentais: só tínhamos o espaço delimitado pelos mapas, era como se não houvesse a possibilidade de mapear por fora do mapa. Devíamos – e o velho ergueu o dedo, fazendo condizer a voz com o tom grave – carregar as culpas nos colonizadores e nos que promoveram a cartografia. De acordo com os mapas, não há lugares por descobrir. O mundo de repente fecha-se sobre uma pequena concha. Torna-se mais pequeno do que umas mãos.
O saltimbanco não concordava. Visitara muitos lugares que só vinham no mapa, não estavam urdidos no tear que compunha o astrolábio pessoal. Não queria recordar o drama encomendado para o futuro pelo velho que afinal não era sábio. Os mapas mostravam um espelho do mundo, cada centímetro desnudado exposto ao olhar censório dos descuriosos da geografia. Mas não era essa a medida. Os lugares podiam ser remotos e a lonjura era dissolvida pela proximidade revelada. Essa não era a conta que tinha dos lugares desconhecidos.
Um dia, contou o número de países. Depois, contou o número de países que estavam marcados no passaporte. Eram tantos os que não tinham entrada no passaporte! Estava longe de ser um saltimbanco (e o passaporte era o seu dicionário). Desenganou-se: o mundo é de um tamanho que ele não consegue absorver nas mãos. A menos que fosse um globo em forma de candeeiro, com a luz acesa a servir de candeia às mãos.
Não desistiu de ser saltimbanco. Podia não ter o dinheiro para uma volta ao mundo meticulosamente orquestrada para não deixar de fora nenhum dos países inventariados. Ou podia nem ser o dinheiro: o pretexto era a falta de coragem para emalar os pertences e partir atrás dos países que não estavam marcados no passaporte. A empreitada era mais fácil do que julgara. A tecnologia deixa-nos viajar sem sairmos do lugar. Presos a mapas, todos podemos ser saltimbancos. É quando nos libertamos das algemas dos mapas. É quando somos saltimbancos e sedentários.
Quando duas liberdades de sinal contrário entram em rota de colisão, o abalo sísmico pode ser colossal. A menos que os tutores das liberdades que se antagonizam percebam o sentido original da liberdade. E percebam que sendo liberdades de sinal contrário podem coexistir. Uma liberdade exerce-se através do reconhecimento e respeito da liberdade de sinal diferente. Se esta condição não for observada, a liberdade de uns tende a sobrepor-se à liberdade dos outros, com danos para a liberdade de todos. Nessa altura, deixa de ser liberdade. Passa a ser uma palavra nua mastigada pelas bocas dos proponentes, sem correspondência com um sentido material de liberdade.
Há dias, deu brado a apresentação pública de um livro (“Identidade e Família”, organizado por Bagão Feliz, Paulo Otero, Pedro Afonso e Victor Gil). A cada vez mais personagem sebastiânica (para certos quadrantes), o ex-primeiro-ministro Passos Coelho, foi convidada para apresentar o livro. Acabou por fazer um comício – uma espécie de prova de vida. Mas o que interessa para este texto é o livro. É um panfleto a favor de uma conceção monolítica de família, de uma orientação sexual restrita, do lugar arcaico da mulher na sociedade e é um manifesto de abjuração de modelos familiares alternativos, de comportamentos sexuais não convencionais, de reinterpretações da identidade de género, atacando o “wokismo” que faz o seu caminho com o patronato de muita academia.
Começo pelos alicerces das liberdades: os conservadores que contribuíram para aquela obra têm o direito a perfilhar um modelo de família. Não se lhes seja vedado o direito a publicarem as suas posições, que tamanho índex não teria cabimento numa democracia. Estes conservadores serão, certamente, heterossexuais. Arrepiar-se-ão com os transgéneros, com o casamento entre homossexuais (que ainda não digeriram), com a adoção por casais de homossexuais, com a complexidade das múltiplas identidades de género e suas variantes e sub-variantes. Continuam a dedicar à mulher as delícias da lida da casa.
Até se percebe a iniciativa de publicar um livro que se agarra às saias das sacristias como reação ao que muitos consideram o avanço inexorável do “wokismo” e do que os conservadores entendem ser a destruição de códigos de conduta ancestrais e de um modelo de família que, a seu ver, foi o fermento do avanço civilizacional em que nos situamos. Percebe-se que se insurjam contra o mantra dos “wokistas”, contra os seus imperativos categóricos e o comportamento totalitário que ostraciza, sem direito a contraditório, os que não seguem a dogmática e os que ousam questioná-los.
Eis a minha declaração de interesses: incomoda-me a arrogância dos novos engenheiros sociais e a materialização de uma coutada de irredutíveis. Sempre me causaram espécie os fundamentalismos de todas as espécies. Perturba-me a exteriorização dos imperativos categóricos e a sobranceria com que desprezam quem não os segue e desterram quem os contesta. Não me arrelia o que defendem e os modos de vida diferentes do meu. São a manifestação de uma liberdade que a minha liberdade (acima de tudo, de consciência) me convoca a respeitar.
Defendo a possibilidade de casais homossexuais se casarem e terem o mesmo direito de adoção que os heterossexuais. Não tenho nada a dizer sobre o que se passa sob os lençóis, que o sexo é matéria de intimidade e da autonomia individual (apesar de alguns conservadores exibirem o patusco apetite de extraírem o sexo à reserva da intimidade, sabe-se lá porquê). Sou indiferente à promiscuidade dos outros, só me custa que a palavra “promiscuidade” tenha uma conotação pejorativa de acordo com as definições canónicas dominantes. Respeito que um homem queira ser mulher e vice-versa, num ato de coragem que devia ser uma lição para a bravura de garganta dos marialvas conservadores. Não consigo entender a perpetuação de desigualdades entre homens e mulheres, nomeadamente as que empurram as mulheres para a inevitabilidade da lida da casa. E se a criatividade humana gerou um viveiro de complexas e fluídas alternativas de identidade de género, quero que a vontade de quem se define de uma certa forma seja respeitada.
Para além do incómodo que me causam os métodos de colonização cultural dos “wokistas” (pela ressonância totalitária), respeito a liberdade de quem tem ideias e opções diferentes das minhas. Esta lição básica de cidadania anda desaprendida: se nos respeitarmos mutuamente, a liberdade de cada um não é acossada. Parece que as liberdades de uns são virtuosas e as liberdades dos outros são subalternizadas.
Se os conservadores se opõem aos métodos e às ideias dos “wokistas” e os acusam de querem destruir a sua visão de família, sexualidade, identidade de género e papel da mulher na sociedade, escolheram um método que não os distingue dos antagonistas. Com uma agravante: leem-se excertos do livro e o que vem à memória é a logorreia de Putin na cruzada moralizadora contra a “decadência ocidental”. Os conservadores arregimentados neste livro não andam muito longe de Ivan Ilyin.
Agora que este livro foi publicado, conservadores e “wokistas” estão no mesmo patamar de repressão da liberdade que atiram para cima dos que não se reveem nas ideias que defendem. Deixaram de se distinguir, a não ser pelo que os divide.
O abril que sabe a julho. As portas que se atravessam no caminho das janelas, trazendo para dentro o luar do outono mesmo que seja a vez do estio. As marcas que nunca são registadas, abolidas as denominações de origem. As identidades abominadas para não sermos metidos em cercas e depois nos odiarmos na exata medida da ocupação de espaços delimitados.
O sangue que não é geográfico. Os idiomas que são diferentes mas se traduzem uns nos outros. Os usos que têm diferentes paradeiros e todavia se acostumam mutuamente. As ameias que deixaram de ser de castelos para serem apenas reservas mentais. As fronteiras porosas que prescreveram. O sentimento de humanidade que atravessa fronteiras, ditando atávicos os hinos e bandeiras. O princípio geral da concórdia se pactuarmos a mestiçagem.
Os mares que se entrecruzam. Os continentes que se fundem uns nos outros pelo braço estendido pelos oceanos. As pessoas que viajam, conhecem-se, inventariam diferentes geografias, idiomas, comidas, usos, pessoas. E como amadurecem num sentimento de comunhão que torpedeia as barreiras desassimiladas.
Os olhos que são de cores idênticas e os olhares que acrescentam diversidade aos objetos observados. As bocas que falam diferentes idiomas, mas que se entendem por serem titulares de um tesouro comum. O respeito pelos que hasteiam diferenças em relação a nós. Por titularidade do respeito que exigimos dos outros e sem ser apenas por esse cunho oportunista, por mero código de conduta que arroteia a harmonia entre gentes de diferentes latitudes e longitudes.
Não somos cultores das diferenças como sinal de dissidência. Estendemos os braços aos outros, perguntamos, aprendemos com eles, damos resposta à curiosidade sobre nós. E nunca a afirmação das idiossincrasias é arrogante. Atiramo-nos às diferentes geografias como forasteiros descomprometidos, uma sede tremenda de conhecimento: não há lugar a hierarquias nem preconceitos sobre o cotejo entre o lugar da partida e os lugares de chegada. Mestiçamos, porque somos património comum uns dos outros. Se nos exigirem definição, diremos que a única coisa que odiamos é a beligerância autodestrutiva do Homem, a sua feição execrável de não ter estatura para ser maior.
Mestiçados, mercadejamos o lugar centrípeto da humanidade.
Partir do lugar ausente não é prejuízo. Os verbetes do futuro amotinam-se no arrastar do tempo; protestam: o futuro parece uma empreitada sempre adiada, como se não chegasse a haver futuro. Os olhos não mentem. Arrumam os destroços amontoados nas lombadas puídas. Alicerçam as palavras, que não são sábias. A enseada esconde as ilhas. As ilhas que somos, descomedidos no apalavrado medo de falharmos. É uma angústia que não precisa de ser redimida. A preparação metódica para o logro devia fazer parte dos códigos de conduta. A visão noturna não é a congeminação de um eclipse. Não é a ocultação dos luares que ateiam os fogos redentores, os fogos que avivam a alma. A coreografia das luzes e das sombras é uma pauta letrada. Para que a alma não seja refém de hibernações que refugiam as almas na letargia. Não há bravura nos adágios populares. Não há sensibilidade na pele arguta que se encoleriza contra as tatuagens impostas. Não há parcimónia nos gestos loquazes que substituem a gramática das palavras. Azougado o pensamento, atira-se desmedidamente ao caudal iracundo do rio. Precisa de um caudal agitado, para ser agitado de um lado para o outro, continuamente com o sobressalto do naufrágio a ferir o sangue com uma dor abraseada. Se calhar, devíamos ser náufragos só por uma vez. Ou somo-lo sem saber, tantas vezes pelo tempo fora, e nem precisámos de ser embarcadiços. Os olhos tingidos pela insónia açambarcam as sombras que ameaçam colonizar o sangue combustível. A matéria sensível ocupa as paredes limítrofes, deixa na boca o sabor de uma nortada irreparável. A boca é o escanção que freia os fantasmas quando o corpo é atirado contra a falésia. Sem dar conta, vestem-lhe asas. E impera sobre o horizonte, fazendo-o peito que alberga os tempos sem memória.
Não é anátema: ele há cabeças grandes, sem ser na expressão literal, a expressão de uma cabeçorra descomunal – a estes também se chama cabeçudos por causa do diâmetro excessivo da cabeça. Há outros, metafóricos, cabeçudos. Os teimosos militantes que arroteiam a teimosia até ao limite, porque preferem despenhar-se no abismo a dar o braço a torcer.
Os cabeçudos tais já embolsaram a sua pessoal cátedra. Ninguém sabe mais do que eles, ninguém é tão visionário, ninguém tem o passado tão diligentemente inventariado, ninguém tem tão alta perspicácia, ninguém conseguiu tutelar tão invejáveis proezas, ninguém é tão improvável e singular. O cabeçudo não é nada do anteriormente enunciado e, porém, insiste na megalomania e na mentira enredosa. Por dentro do cabeçudo, a realidade navega numa maré que não existe no seu exterior.
O tamanho da cabeça do cabeçudo é inversamente proporcional à massa cinzenta que hospeda. De tão néscias personagens não se diga que são albergues de sapiência, ou de bom-senso (à falta da anterior) que os safe da risibilidade. Há muito espaço livre na combinação entre o perímetro craniano e a massa cinzenta que nele encontra moradia. A desproporção materializa um espelho virado do avesso: o cabeçudo é tudo, e por exata medida, do contrário do que supõe ser.
Às vezes diz-se, em tom admirativo, “aquele(a) é uma cabeça” (leva sempre ponto de exclamação no final da oração). Até pode ser uma cabeça pequenina, com elevada concentração de cérebro e sua diligente utilização. Estes é que deviam ser os cabeçudos, pois são as cabeças grandes que congeminam o pensamento maior. Emblemas do pensamento concentrado (é o que são). O povo, na diatribe que o suga por dentro, não deu conta da ordem dos fatores autêntica na expressão idiomática que consagrou. Não é cabeçudo o apedeuta que transforma ilusões em realidade. Seria o letrado, o erudito, o adiantado mental que deixa os outros extasiados com tão notável inteligência. Seria, se o povo o reconhecesse.
Este é que devia ser elevado ao púlpito dos cabeçudos. Seria preciso, a título prévio, que a palavra fosse esvaziada do peso pejorativo que arca. Só então, os iluminados que se distinguem como escol aceitariam ser entronizados como cabeçudos.
Só uns cabeçudos é que insistem chamar cabeçudos aos que não são.
O desfile de padres à paisana (as sotainas envergonhavam, o anátema do conservadorismo já soava de mais) aparentava uma fileira de moralidade íntegra. As suas virtudes açambarcavam os maus vícios dos demais. Os sacerdotes tinham um dialeto que os denunciava (não era preciso ostentarem as sotainas). À boca pequena – à boca pequena, porque os vestígios do salazarismo entranhado recomendavam que não fosse permitida atitude lúdica com assuntos sérios – passava de boca em boca a suspeição de que algum clero se afastava das pregações, dando corpo ao provérbio sobre os privados vícios que não entram no radar dos mandamentos nem no crivo das apreciações.
Os sacerdotes extraviados dos mandamentos não estavam privados dos vícios impedidos pelos mandamentos. Alguém atirou uma hipótese para o palco: e se o problema estivesse nos mandamentos, por serem atávicos e não reconhecerem que o prelado é feito de homens que são tão homens como os homens fora dos conventos? Foi dito, a propósito da proposição: as lições da História não servem só para doutrinar a humanidade sobre a estultícia da guerra; também servem para pesar os comportamentos e as consequências. Aquela parte ínfima da humanidade com lugar cativo nos concílios não aprendeu – ou não quis aprender – que uma castração triplica a tentação do comportamento proscrito.
As sucessivas cortinas de fumo e as miragens projetadas pelas sombras hereditárias ajudaram à opacidade. Seguiu-se a solidariedade da casta, a impunidade consentida e o desprezo das vítimas mercê da ignorância a que eram votadas. O imorredoiro medo do inferno da turba desinstruída fez o resto. Os crentes, emudecidos com o pavor da morte encomendada aos demónios, foram as vítimas fáceis do poder assimétrico. A influência dos pastores das almas depressa era confundida com poder sem sindicância. Os pastores das almas, homens como os outros, depressa decaíam nas mesmas fragilidades anotadas aos seguidores. O poder de absolvição, nos pecadilhos quotidianos e no estrutural julgamento feito sobre a urna, transformou humildes pregadores da palavra divina em imperadores das almas. Virados para dentro de si, praticantes de vícios ilegítimos, deitando mão a privilégios (e à sua ocultação) contra os mandamentos e as leis.
A fé fora instrumentalizada pelos seus mentores. Eles, meros homens como os demais, adulteraram a fé, tornaram-na numa dependência de sentido único, retiraram a liberdade do código de conduta, cavalgaram na arrogância do seu doentio egoísmo. A relação passou a reger-se pelo medo, dependência e obediência; pela satisfação dos caprichos não sancionados pelas escrituras que os pastores exigiam sob pena de a absolvição não ser autorizada.
Ainda está por apurar o inventário das almas destruídas pelos pastores das almas.
Não são as luzes que selam as juras contra o futuro. As estátuas ganham vida quando passamos por elas, como se fôssemos nós a avivar as regras que foram perdidas em tempos sem memória; as estátuas são uma promessa de futuro (ou um passado imorredoiro). Toldamos a paisagem com sílabas soltas, infernais, que extinguem a lucidez amanhecida. Não somos fieis depositários da angústia. Não queremos conjugar o verbo que se depõe na finitude do ser.
Podíamos consagrar uma divindade, ou escolher um verso arrebatado (ele há tantos à escolha), ou deliberar sobre o passado ao sujeitá-lo a uma defenestração, ou apenas caminhar até ao mar e ficar a contemplá-lo enquanto decai no entardecer. Não temos consciência da arbitrariedade em que lobrigamos: não somos feitos para sermos imparciais juízes de ninguém, e muito menos no autojulgamento. Os erros colossais estão inventariados e não reivindicam a redenção. Deixaram marcas para memória futura. Se conspiramos contra o futuro, esquecemos o magma de que fomos feitos. Ser adulteração do que fomos integra o rol das possibilidades. Abraçar a diferença não é uma adulteração do eu: temos o direito imprescritível a ser um eu diferente.
Deixamos de fora divindades, as capacidades heurísticas das artes, a peregrinação pelos ideais que tanto tempo gastaram ao pensamento em idealizações sumptuosas e utópicas. Deixamos a falar as vozes que se amontoam no colo do passado, fazemos um apanhado da cacofonia em papel de resumo. É magnífico o direito a fracassar! Os logros embutidos como tatuagens não são expressões vivas de sobressalto: tiveram lugar num tempo que perdeu o horizonte, podem ter deixado cicatrizes sem correção, mas são porta-vozes do direito a sermos frágeis. E essa é uma formidável fortaleza que se encerra dentro de nós.
Das suas mitras pontifícias, cuidadores das almas escrevem compêndios sobre a salvação dos outros. Não somos patronos do nosso amesquinhar, pois concebemos a autoestima espoliada como um narcisismo de sinal contrário (mas narcisismo). Decretamos, para memória futura: temos matéria-prima para nos salvarmos de nós mesmos, mas preferimos ser assim.
As árvores entrançadas, numa trama difícil de esmoutar, apresentam o palco residente. O som parece aturdido pela humidade que conspira com o calor, como se a subida a palco começasse a extinguir o ar que entra nos pulmões. Os sentidos vão a caminho da anestesia (ou assim parece). Um caleidoscópio de labirintos desce sobre o palco. É preciso escolher um. Ao acaso, porque todos parecem iguais.
O labirinto escolhido amplia a inexatidão dos sentidos. As paredes do labirinto fogem ao tato. O chão está constantemente escorregadio. As palavras murmuradas ecoam por todo o lado, parece que há vultos escondidos a povoar o sobressalto. O caminho é feito de armadilhas: espelhos virados do avesso, máscaras que parecem pessoas disformes, palavras que soam a idiomas ininteligíveis, gritos lancinantes desenhados nas paredes do labirinto, o esvaziamento do tempo (há um relógio com os ponteiros quebrados; a lucidez, se a houvesse, diria tratar-se de uma anomalia do relógio, não do tempo).
De repente, uma janela abre-se e deixa ver uma estrada que dá acesso a uma praia. Num repentismo, salta a janela e exila-se do labirinto. O vento fresco quadra com a liberdade resgatada. Ninguém lhe contou que teve de terçar lutas com feras iracundas para sobreviver no labirinto. Talvez seja a razão para algumas cicatrizes que apura no rosto, nos braços, nas mãos. O vento passa a uivar, também iracundo. O vento traz em si todos os medos colhidos à passagem pelos lugares antecedentes. Sente o peso de todos esses medos. Mas não se intimida. Os medos não o têm como paradeiro. Ele é procurador do desmedo.
A descida abrupta dá acesso à praia exígua, numa falésia que se deita sobre o mar. O vento arrefeceu a sua fúria. Abrigado pelos contrafortes da falésia, é como se tivesse emagrecido, tanto o peso que o arqueava quando lutava contra o vento e que agora deixou de carregar. O mar escolheu a sua cor preferida. Esbraceja umas leves ondas, a querer comunicar com ele. Detém-se à frente do mar, meticulosamente contando as ondas entre a chegada e quando apetecer deixar a praia. Perdeu-se nas contas. Adormeceu, a crer na noite que já ia funda.
Não soube se o sono inventariou os sonhos desarrumados na sucessão de palcos caóticos. A crer nas cicatrizes tatuadas no corpo, a caçada tinha sido intrépida. Às vezes, no colóquio da sobrevivência, ou se mata ou se é morto. Outras vezes, limitamo-nos a observar os adversários.
Sejamos descidadãos, voltados sobre a rebeldia que nos ferve o sangue, desaprendendo os cânones, postergando compromissos, denunciando as conspirações que se movem contra a liberdade de espírito, dando caução aos dissidentes fartos de tanta normalidade e de verem hasteada a palavra “estabilidade”, assim transformada em valor quando é apenas um meio. Sejamos descidadãos, por antinomia com a cidadania domesticada que nos oferece talhadas de hibernação.
Prevaricamos? Se nos regermos pelos cânones, prevaricamos. Depressa ficamos escondidos na reserva onde se exilam os párias, sujeitos à apóstase decretada pelos lídimos procuradores do estabelecido. Prevaricamos e depressa ficamos sob a alçada da vingança estatuída para os párias sem redenção, só um pouco em falta para serem despojados da nacionalidade. Prevaricamos se somos condenados à apátrida condição, ou se intencionalmente o fazemos para nos ser subtraída a pertença que consta do documento de identificação.
Prevaricamos se mexemos na matéria necrosada que não admite questionamentos. Ainda mais prevaricamos se usarmos a ironia para tirar o pedestal a divindades que se convenceram que assentam em pés de ouro. Como prevaricamos se ofendemos as autoridades com um inocente escárnio, pois há uma casta que não admite ser ridicularizada e desse modo assesta o arsenal contra o princípio da igualdade de que se pavoneia ser embaixadora.
Prevaricamos, apenas porque nos apetece prevaricar. Não escondemos a prevaricação, que não toleramos o interior tatear da alma ungida pela hipocrisia. Prevaricamos, sem máscara instituída (que já chegou o tempo da máscara imposta por decreto). Prevaricamos sem ser à distância, com a falsa coragem de se saber inacessível para a fúria dos visados. A prevaricação com paradeiro certo não procura refúgio das punições cominadas.
Procuramos novas sedes de prevaricação. Ousamos descobri-las nos lugares mais insuspeitos, nas palavras eruditas que não se salvam de uma salva de escárnio, nos heróis desmobilizados pela usura de deixarem que os entronizem nessa condição, nas malparidas hagiografias que servem para esvaziar pretensiosas figuras em pré-estado de beatificação. Procuramos os alvos da prevaricação até debaixo dos calhaus, em incursões submersíveis, nos céus onde se perfilam os catedráticos de coisas muitas a meias com estrelas cadentes, na arraia-miúda para não sermos acusados de um viés em desfavor dos “notáveis”.
Continuaremos a prevaricar, a menos que a prevaricação se esgote por dentro e seja normalizada, perdendo a sua linhagem de prevaricação.
Que pena, o satélite caiu. Já não temos inveja dele. Já não está arqueado sobre nós e não olha com a sobranceria de quem tem vistas privilegiadas sobre o planeta, como o consegue contemplar à distância de um miradouro privilegiado.
O satélite desintegrou-se quando entrou na atmosfera terrestre. Podia-se sentenciar o desfado do satélite: ele que usufruiu, por uma temporada demorada, de vistas invejáveis do planeta, assim que nele entrou ficou sujeito à inveja do planeta que o consumiu, deixando-o em forma de archote. Podia-se estender a sentença: o planeta gostava de sair dos seus pés para se ver de fora de si mesmo. Há muitas pessoas que são acometidas pela mesma angústia.
Os engenheiros que eram os pilotos remotos do satélite diligenciaram um estertor sem danos em vidas e bens. As vidas e os bens (por esta ordem, ó neoliberais!) vão sempre à frente no ranking das preocupações. Quando é preciso fazer arredondamentos, as vidas e os haveres são palavras maiores. Não podem ficar a perder para outros fins, nem ser sacrificados numa estulta coreografia de meios que se antepõe aos fins.
Os engenheiros que pilotavam o satélite à distância deitaram-se com a consciência absolvida. Não podiam fazer melhor. O pobre satélite estava condenado. Os satélites também prescrevem, como as vidas das pessoas prescrevem quando atingem o prazo de validade e a morte tem precedência sobre o demais. Os engenheiros aeroespaciais deviam ter aprendido com a frieza dos médicos. Estes nunca se comovem com a extinção de um paciente.
Antes de um engenheiro se deitar, a consorte perguntou onde caiu o satélite e se não era possível recuperar os despojos. O engenheiro retorquiu com a localização. “E os restos, não os podem recuperar?”, insistiu ela. O engenheiro teorizou, com a paciência de um lente e a mesma linhagem pedagógica, que ao entrar na atmosfera terrestre a fricção e a velocidade de entrada no planeta condenam o engenho à desintegração. O satélite fica feito em cinzas, que foram cair num lugar remoto entre o Índico e o Antártico.
“Ainda bem”, disse ela, antes de descansar a cabeça na almofada. “O planeta sabe ser justiça divina. Ele não podia aceitar que um objeto que gravitou na sua órbita pudesse matar vidas e destruir posses.” E o engenheiro aeroespacial caiu num sonho mirífico de quem se sabe recompensado sem, todavia, poder reivindicar as loas.
Nos arrumos da alma encontra-se um entulho que não espera sindicância. Todo o vento haurido conspira desde o passado, amontoa-se no estertor dos amanhãs desembaraçados. Conspira, com o verbo gasto dos vultos que se sobrepõem à lava arrefecida esgrimida pelo vulcão nativo.
II
Nos escombros que esperam inventário, alinham-se desordenadamente as máscaras. Não é intendência saber do paradeiro anterior das máscaras: que palcos transgrediram, a que circos se emprestaram, os rostos de que foram disfarces. A apatia condenou as máscaras ao esquecimento. Essa é a serventia dos escombros.
III
Na noite órfã, o sono perdeu para a rebeldia da insónia. Os patamares ouvem as preces murmuradas nos sonhos. O luar recebe nas mãos as participações da angústia. Os depoentes esperam que a lua seja generosa. Esperam que a lua enxague a pele torturada pela angústia.
IV
As casas avistam-se desde a cumeada, estão longe. Iluminadas pela luz pública que ainda não desacompanhou a noite. O casario dava para palcos variados, por poucas que sejam as almas habitantes. A neve tardia arrefece o sangue dos aldeões, exilados no conforto das lareiras. Joga-se o tempo contra a malha da Primavera que é cúmplice do Inverno. O frio demove a participação na rua. A aldeia é um ermo. Em uníssono com a velhice média dos aldeões.
V
O casal de idosos entrelaça as mãos enquanto o pequeno-almoço tarda. Permanecem em silêncio, os olhares de cada um tomando destinos diferentes. As mãos antes frias começam a aquecer. Eles não precisam de palavras. Os dedos que se afagam mutuamente são o idioma que precisam.
VI
Dizia: “os filhos são os adamastores que arrancamos de dentro de nós, a verdade que nos falta contar antes de sermos reféns do tempo.” Tanto tempo depois, ainda não conseguia perceber se concordava. Os dentes do tempo mordem a noite anciã, como se fôssemos contrariados a caminho da velhice. Suamos nesta biblioteca onde tatuamos o sangue hereditário. O resto, “não fica por nossa conta”. Como se soubesses ser profeta.
Tira as algemas dos olhos que impedem que a manhã se emoldure no horizonte. É preciso que amanheçam, imagens e manhã, no palco uníssono onde se amestram as palavras oriente. As mordaças eternizam a noite, deixam-te sem a fala que queres congeminar: se te levarem à mudez, a fala silenciada impede que sejam tuas as palavras que se oferecem como manual de intenções.
As imagens sobrepõem-se ao passarem pelo crivo da tempestade cerebral. Sucedem-se tão depressa que não as consegues domar. Ficas descontente com o esbanjamento. Convencido que irás inventar um ardil para nenhuma imagem ficar à margem da manobra, tornas-te inventor. Inventaste o fermento das imagens.
Agora não te angustias nos dias consecutivos em que sentias que o desperdício de imagens era a prova das tuas limitações. Havia quem te dissesse que os outros também precisavam do fermento das imagens para não te sobressaltares com a incapacidade para vazar todas as imagens que passam diante do olhar. Não te convences com a generosidade. O único cimento que interessa é aquele que usas interiormente, até que o olhar se desloque a uma velocidade supersónica e nenhuma imagem seja discriminada.
O fermento das imagens acelera a capacidade de processamento. Deixas a opacidade à porta, para que se meneie no lutuoso desprendimento das forças mortas que projetam um manto lúgubre sobre o dia constante. Em vez das armas que sujeitam o tempo a um paradeiro incerto, as imagens são processadas sob a intendência de uma voz sem sono, como se fosse preciso todo o tempo disponível para desalfandegar o olhar das imagens que o querem colonizar.
O fermento das imagens pode ser ilegalizado. Os poderes não toleram gente tão diligente, gente tão, afinal, instruída. Os cortesãos amputados dizem adeus aos faraós que prometem malvasia e iguarias distinguidas (um eufemismo do ardil). Os poderes temem os que tomaram o fermento das imagens: não há melhor sindicância a que se possam sujeitar. E isso é o pior que (lhes) pode acontecer.