22.4.24

O olhar boreal

Ólafur Arnalds, “Hafursey (Hyfir)”, in https://www.youtube.com/watch?v=THReFnx3l50

Sento-me no equador do pensamento. As mãos tremem, talvez o medo pelo peso de todos os ontem açambarcados à memória. Todos esses dias desvinculam-se da memória, dão-lhes carta branca para mortificar os dias constantes. Não me intimido. Sei que à medula vou buscar as forças bastantes para sofrear os vultos que dançam sobre o paradeiro da tarde.

Não são os espelhos contumazes que adormecem o medo. É o sangue que emerge desde o magma inconsciente, uma força sem nome, não datada, a única arma admitida. Digo da enseada o elogio que se ampara no lugar extático. Precisamos de paisagens que fazem parar o tempo. Ficamos extasiados a respirá-las enquanto nos esquecemos das moradas onde se aloja o demais. Por esse olhar agraciado passam os versos argutos, a descrição sumária da constelação de sentimentos que arrepia a pele. 

Pelo olhar boreal desfilam as imagens que rareiam, uma denominação de origem. Do corpo se dirá que conseguia subir os socalcos sem se arquear ao cansaço. E pelos sendeiros sucessivos sentia-se a alma remoçada: o envelhecimento virava-se do avesso à medida que o olhar boreal se ensoberbecia com todos os lugares bucólicos, com a procissão de estrofes cantantes que levitavam o corpo em coreografias improváveis.

A manhã só estava ao alcance de um escol. Aos que precisam de beber todo o silêncio conjuntural que sobe pelo periscópio da manhã. Não fogem das dádivas colhidas na generosidade adjetiva. As estrofes da vida desembaraçam-se dos contratempos. A luz aviva-se, é de uma nitidez singular. Só de um olhar assim é possível ser patrono da dança de cores que se emoldura no olhar boreal.

Os violinos sussurram, depois vão num crescendo, somando-se uns aos outros. São as vozes que perfumam a nossa pele. Os versos que têm os nossos nomes, o degelo do medo. Dizes: é esta paisagem quimérica que entoa os violinos. E nós, de mãos dadas, apuramos a silhueta dos contrafortes, a paisagem rude que emudece para ouvirmos o refrão da nossa respiração. Ontem – dizes – sabíamos menos do que hoje. Por isso digo que desenvelhecemos. 

Sem comentários: