24.4.24

Rebentação

mutu, “Ceifa”, in https://www.youtube.com/watch?v=emfDxqSDa_Q  

As ruas desalinhadas perguntavam ao sol pelas falas das pessoas. As ruas estavam desertas, não estavam habituadas. Tinham medo que as pessoas fossem procurar exílio, que uma catástrofe se tivesse abatido sobre o lugar e, entre baixas e sobreviventes, estes tivessem escolhido o nomadismo.

Era apenas uma coincidência. Um daqueles fenómenos com elevada improbabilidade estatística. As pessoas descoincidiram das ruas centrípetas. A cidade tornou-se um ilegítimo ermo e até se conseguia ouvir o ciciar das aves resistentes. Os pássaros não deram o mote para o apocalipse que podia ter acontecido se se confirmassem as baixas e os exílios involuntários dos sobreviventes. Eles pressentem as catástrofes e não havia testemunhos da agitação dos pássaros. 

Nos minutos em que as ruas estiveram vazias, até o ar parecia que tinha outra linhagem. Não era pesado, não parecia sitiado pela excessiva respiração das pessoas que enxameiam as ruas. Parecia que era o ar expirado pelas pessoas que pesava na poluição, ilibando os automóveis e as fábricas. As pessoas eram o maior embaraço à qualidade do ambiente, confirmando as profecias autorrealizáveis.

As ruas, enquanto estiveram ausentes de almas, continuaram a respirar. Continuaram a olhar de longe para o mar que se estendia numa suave língua acobreada até aos cais que eram a sua embocadura na cidade. As ruas centrípetas, tão solenes na graduação das ruas protagonistas da cidade, invejavam o mar. Invejavam a languidez com que o mar se debruçava sobre o avental da cidade, quando não tempesteava. Mas também o invejavam quando o vento desassossegava, ordenando uma estrepitosa rebentação nas pedras graníticas dos cais. As ondas encapeladas encurvavam-se sobre a sua barriga, esfrangalhando-se nos cais, ecoando um fragor que as ruas centrípetas, à distância, adoravam ouvir.

No dia das ruas momentaneamente despovoadas, o mar também se ausentou das medidas habituais. Encolheu. As ruas centrípetas temiam que fosse o prenúncio de um tsunami (as ruas centrípetas são ruas que recolheram muito conhecimento ao longo da sua duração). Foi falso alarme. Os pássaros residentes nas árvores limítrofes continuavam amenos. 

Quando tudo voltou a rimar com a habitualidade, não se ouvia o falar dos pássaros e as pessoas voltaram a azoar as ruas centrípetas, dando-lhes a identidade a que estavam afeitas. E o mar, inflacionado com a nortada do dia, voltou à rebentação contra as pedras graníticas dos cais. 

Sob os auspícios da rebentação, as ruas protagonistas voltaram a ostentar a sua soberba.

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