15.4.24

A família é o que o Homem quiser (ou: às vezes apetece ser de esquerda)

Black Keys, “This Is Nowhere”, in https://www.youtube.com/watch?v=RuB2ktUlsRI

Quando duas liberdades de sinal contrário entram em rota de colisão, o abalo sísmico pode ser colossal. A menos que os tutores das liberdades que se antagonizam percebam o sentido original da liberdade. E percebam que sendo liberdades de sinal contrário podem coexistir. Uma liberdade exerce-se através do reconhecimento e respeito da liberdade de sinal diferente. Se esta condição não for observada, a liberdade de uns tende a sobrepor-se à liberdade dos outros, com danos para a liberdade de todos. Nessa altura, deixa de ser liberdade. Passa a ser uma palavra nua mastigada pelas bocas dos proponentes, sem correspondência com um sentido material de liberdade.

Há dias, deu brado a apresentação pública de um livro (“Identidade e Família”, organizado por Bagão Feliz, Paulo Otero, Pedro Afonso e Victor Gil). A cada vez mais personagem sebastiânica (para certos quadrantes), o ex-primeiro-ministro Passos Coelho, foi convidada para apresentar o livro. Acabou por fazer um comício – uma espécie de prova de vida. Mas o que interessa para este texto é o livro. É um panfleto a favor de uma conceção monolítica de família, de uma orientação sexual restrita, do lugar arcaico da mulher na sociedade e é um manifesto de abjuração de modelos familiares alternativos, de comportamentos sexuais não convencionais, de reinterpretações da identidade de género, atacando o “wokismo” que faz o seu caminho com o patronato de muita academia. 

Começo pelos alicerces das liberdades: os conservadores que contribuíram para aquela obra têm o direito a perfilhar um modelo de família. Não se lhes seja vedado o direito a publicarem as suas posições, que tamanho índex não teria cabimento numa democracia. Estes conservadores serão, certamente, heterossexuais. Arrepiar-se-ão com os transgéneros, com o casamento entre homossexuais (que ainda não digeriram), com a adoção por casais de homossexuais, com a complexidade das múltiplas identidades de género e suas variantes e sub-variantes. Continuam a dedicar à mulher as delícias da lida da casa. 

Até se percebe a iniciativa de publicar um livro que se agarra às saias das sacristias como reação ao que muitos consideram o avanço inexorável do “wokismo” e do que os conservadores entendem ser a destruição de códigos de conduta ancestrais e de um modelo de família que, a seu ver, foi o fermento do avanço civilizacional em que nos situamos. Percebe-se que se insurjam contra o mantra dos “wokistas”, contra os seus imperativos categóricos e o comportamento totalitário que ostraciza, sem direito a contraditório, os que não seguem a dogmática e os que ousam questioná-los.

Eis a minha declaração de interesses: incomoda-me a arrogância dos novos engenheiros sociais e a materialização de uma coutada de irredutíveis. Sempre me causaram espécie os fundamentalismos de todas as espécies. Perturba-me a exteriorização dos imperativos categóricos e a sobranceria com que desprezam quem não os segue e desterram quem os contesta. Não me arrelia o que defendem e os modos de vida diferentes do meu. São a manifestação de uma liberdade que a minha liberdade (acima de tudo, de consciência) me convoca a respeitar. 

Defendo a possibilidade de casais homossexuais se casarem e terem o mesmo direito de adoção que os heterossexuais. Não tenho nada a dizer sobre o que se passa sob os lençóis, que o sexo é matéria de intimidade e da autonomia individual (apesar de alguns conservadores exibirem o patusco apetite de extraírem o sexo à reserva da intimidade, sabe-se lá porquê). Sou indiferente à promiscuidade dos outros, só me custa que a palavra “promiscuidade” tenha uma conotação pejorativa de acordo com as definições canónicas dominantes. Respeito que um homem queira ser mulher e vice-versa, num ato de coragem que devia ser uma lição para a bravura de garganta dos marialvas conservadores. Não consigo entender a perpetuação de desigualdades entre homens e mulheres, nomeadamente as que empurram as mulheres para a inevitabilidade da lida da casa. E se a criatividade humana gerou um viveiro de complexas e fluídas alternativas de identidade de género, quero que a vontade de quem se define de uma certa forma seja respeitada.

Para além do incómodo que me causam os métodos de colonização cultural dos “wokistas” (pela ressonância totalitária), respeito a liberdade de quem tem ideias e opções diferentes das minhas. Esta lição básica de cidadania anda desaprendida: se nos respeitarmos mutuamente, a liberdade de cada um não é acossada. Parece que as liberdades de uns são virtuosas e as liberdades dos outros são subalternizadas.

Se os conservadores se opõem aos métodos e às ideias dos “wokistas” e os acusam de querem destruir a sua visão de família, sexualidade, identidade de género e papel da mulher na sociedade, escolheram um método que não os distingue dos antagonistas. Com uma agravante: leem-se excertos do livro e o que vem à memória é a logorreia de Putin na cruzada moralizadora contra a “decadência ocidental”. Os conservadores arregimentados neste livro não andam muito longe de Ivan Ilyin.

Agora que este livro foi publicado, conservadores e “wokistas” estão no mesmo patamar de repressão da liberdade que atiram para cima dos que não se reveem nas ideias que defendem. Deixaram de se distinguir, a não ser pelo que os divide.

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