9.4.24

Para memória futura: isto não é uma teocracia

Massive Attacks, “Inertia Creeps”, in https://www.youtube.com/watch?v=w3mn7EC-skg

O desfile de padres à paisana (as sotainas envergonhavam, o anátema do conservadorismo já soava de mais) aparentava uma fileira de moralidade íntegra. As suas virtudes açambarcavam os maus vícios dos demais. Os sacerdotes tinham um dialeto que os denunciava (não era preciso ostentarem as sotainas). À boca pequena – à boca pequena, porque os vestígios do salazarismo entranhado recomendavam que não fosse permitida atitude lúdica com assuntos sérios – passava de boca em boca a suspeição de que algum clero se afastava das pregações, dando corpo ao provérbio sobre os privados vícios que não entram no radar dos mandamentos nem no crivo das apreciações. 

Os sacerdotes extraviados dos mandamentos não estavam privados dos vícios impedidos pelos mandamentos. Alguém atirou uma hipótese para o palco: e se o problema estivesse nos mandamentos, por serem atávicos e não reconhecerem que o prelado é feito de homens que são tão homens como os homens fora dos conventos? Foi dito, a propósito da proposição: as lições da História não servem só para doutrinar a humanidade sobre a estultícia da guerra; também servem para pesar os comportamentos e as consequências. Aquela parte ínfima da humanidade com lugar cativo nos concílios não aprendeu – ou não quis aprender – que uma castração triplica a tentação do comportamento proscrito. 

As sucessivas cortinas de fumo e as miragens projetadas pelas sombras hereditárias ajudaram à opacidade. Seguiu-se a solidariedade da casta, a impunidade consentida e o desprezo das vítimas mercê da ignorância a que eram votadas. O imorredoiro medo do inferno da turba desinstruída fez o resto. Os crentes, emudecidos com o pavor da morte encomendada aos demónios, foram as vítimas fáceis do poder assimétrico. A influência dos pastores das almas depressa era confundida com poder sem sindicância. Os pastores das almas, homens como os outros, depressa decaíam nas mesmas fragilidades anotadas aos seguidores. O poder de absolvição, nos pecadilhos quotidianos e no estrutural julgamento feito sobre a urna, transformou humildes pregadores da palavra divina em imperadores das almas. Virados para dentro de si, praticantes de vícios ilegítimos, deitando mão a privilégios (e à sua ocultação) contra os mandamentos e as leis.

A fé fora instrumentalizada pelos seus mentores. Eles, meros homens como os demais, adulteraram a fé, tornaram-na numa dependência de sentido único, retiraram a liberdade do código de conduta, cavalgaram na arrogância do seu doentio egoísmo. A relação passou a reger-se pelo medo, dependência e obediência; pela satisfação dos caprichos não sancionados pelas escrituras que os pastores exigiam sob pena de a absolvição não ser autorizada.

Ainda está por apurar o inventário das almas destruídas pelos pastores das almas.

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