19.4.24

Atirou a toalha ao chão

Peter Murphy, “Cuts You Up”, in https://www.youtube.com/watch?v=UrfFHzqGBZI

Atirou a toalha ao chão, como se o chão tivesse culpa. Não fosse o chão estar a dormir e o chão teria acusado a ofensa. Mas o chão, mesmo estando a dormir, sentiu a toalha projetada contra si com uma energia vulcânica. Acordou e, importunado pela dor da toalha, esbracejou um protesto. A toalha atirada contra o chão estava encharcada. Pesava mais. 

A toalha também não foi considerada quando a pessoa a atirou contra o chão. Toalha e chão não foram consultados sobre a consumação do ato de violência. A toalha, depois de aterrar no chão e ficar desarrumada a jazer no chão agredido, esboçou um sinal de protesto. Balbuciou-o, indignada. Assim como assim, a toalha acabara de ter serventia. Enxugara o enfurecido humano depois de se ter banhado. A ira podia ter arrefecido pela ação do banho. Nem assim. 

A pessoa estava cercada pelo chão e pela toalha. O chão, ainda dorido, conspirou com Gaia, a deusa tutelar, para assustar o humano. Gaia inspirou fundo e abanou-se toda para remexer a terra desde as entranhas. O sismo fez tremer o chão. O chão já estava a contar, não se assustou. A pessoa meteu a fúria entre parêntesis, aterrada com o abalo telúrico. Era vingança do chão, com a intermediação de Gaia. A injustiça não podia ficar sem castigo. O tremor de terra era a resposta ao atirar da toalha ao chão.

Faltava a toalha. Despojada no chão entretanto sonoro, a toalha também estava condoída. Para afastar as dúvidas, era só calcular a energia instantaneamente gasta quando a toalha, atirada com o sobrepeso da água que absorveu do corpo da pessoa, atingiu o chão rijo. Ainda atordoada, a toalha jurou represália. Não podia recorrer a uma deusa tutelar, como fez o chão. Pensou interceder junto de Tétis: afinal, o gesto foi violento porque a toalha retinha uma quantidade de água, se não estivesse ensopada a queda no chão teria sido menos pungente.

Tétis, muito sensível à violência gratuita, aceitou a intercessão. À saída de casa, ia o homem a caminho do parque de estacionamento, Tétis fez desabar um dilúvio instantâneo, sem pré-aviso.  O homem, atormentado por outros males interiores que não interessa inventariar, pensou com os seus botões: um homem já não pode atirar a toalha ao chão.

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