29.4.24

Vinho da casa

Echo & the Bunnymen, “Lips Like Sugar”, in https://www.youtube.com/watch?v=9hGcJA8fXvU

As obras feitas dão um bocado dos seus autores. Quando as contemplamos, é como se um pouco dos autores entrasse no nosso olhar. Passamos a ser, um pouco, o que o autor trouxe àquela obra. Ficamos com a noção que somos cada vez menos ilhas.

Amanhecemos com o dia por diante e não sabemos como dele vamos ser mecenas. Talvez dando ao dia uma parte de nós. Nem que o dia se resuma a sermos nós. Neste entrecruzar, confundimo-nos com o dia de que somos tutores. Ou talvez seja o dia que se completa como nosso procurador.

Quando somos forasteiros, o processo de fusão é semelhante. Percorremos lugares, ouvimos idiomas que não conhecemos, conhecemos pessoas que não constavam do inventário dos conhecimentos, experimentamos usos locais, aprendemos a gastronomia, interiorizamos a História e a cultura e sentimo-nos menos forasteiros. Sentimos mais conhecimento. Trazemos desses lugares pertenças e vestígios de identidades que se somam à identidade que em nós de conforma. Nunca chegamos a ser forasteiros.

Ao lançarmos as amarras a um cais, não prescindimos do nomadismo. Podemos ser nómadas mesmo ser sair de casa: empreendemos longínquas demandas mentais que nos levam a lugares remotos, participamos à distância nas idiossincrasias locais, fingimos desidentidades. As viagens mentais impedem que sejamos ilhas, mesmo quando alguém ostensivamente afirma essa despertença plúrima.

É um mosaico de rostos, palavras, paisagens, músicas, contratempos, corpos, árvores, apeadeiros, palcos, poemas, filmes, desavenças, confortos, sonhos ou pesadelos, marés, miradouros, insónias, desafogos de alma. Uma clepsidra que se enche de fragmentos dispersos que não precisam de cimento para serem uma colagem. Um contexto, as circunstâncias que se conjugam a favor ou que conspiram por um sobressalto. Um tempo que pode não rimar com um modo, ou um modo que desmaninha o seu próprio tempo. O vinho da casa, artesanal e singular, resgatado à orfandade, à espera de ser servido na mnemónica do mapa escondido.

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