8.4.24

Quando nos salvarmos de nós mesmos

Kiasmos, “Dazed”, in https://www.youtube.com/watch?v=kdf8dd5k-X0

Não são as luzes que selam as juras contra o futuro. As estátuas ganham vida quando passamos por elas, como se fôssemos nós a avivar as regras que foram perdidas em tempos sem memória; as estátuas são uma promessa de futuro (ou um passado imorredoiro). Toldamos a paisagem com sílabas soltas, infernais, que extinguem a lucidez amanhecida. Não somos fieis depositários da angústia. Não queremos conjugar o verbo que se depõe na finitude do ser.

Podíamos consagrar uma divindade, ou escolher um verso arrebatado (ele há tantos à escolha), ou deliberar sobre o passado ao sujeitá-lo a uma defenestração, ou apenas caminhar até ao mar e ficar a contemplá-lo enquanto decai no entardecer. Não temos consciência da arbitrariedade em que lobrigamos: não somos feitos para sermos imparciais juízes de ninguém, e muito menos no autojulgamento. Os erros colossais estão inventariados e não reivindicam a redenção. Deixaram marcas para memória futura. Se conspiramos contra o futuro, esquecemos o magma de que fomos feitos. Ser adulteração do que fomos integra o rol das possibilidades. Abraçar a diferença não é uma adulteração do eu: temos o direito imprescritível a ser um eu diferente.

Deixamos de fora divindades, as capacidades heurísticas das artes, a peregrinação pelos ideais que tanto tempo gastaram ao pensamento em idealizações sumptuosas e utópicas. Deixamos a falar as vozes que se amontoam no colo do passado, fazemos um apanhado da cacofonia em papel de resumo. É magnífico o direito a fracassar! Os logros embutidos como tatuagens não são expressões vivas de sobressalto: tiveram lugar num tempo que perdeu o horizonte, podem ter deixado cicatrizes sem correção, mas são porta-vozes do direito a sermos frágeis. E essa é uma formidável fortaleza que se encerra dentro de nós.

Das suas mitras pontifícias, cuidadores das almas escrevem compêndios sobre a salvação dos outros. Não somos patronos do nosso amesquinhar, pois concebemos a autoestima espoliada como um narcisismo de sinal contrário (mas narcisismo). Decretamos, para memória futura: temos matéria-prima para nos salvarmos de nós mesmos, mas preferimos ser assim.

Sem comentários: