2.4.24

Manhã-miradouro

Parquet Courts, “Walking at a Downtown Pace”, in https://www.youtube.com/watch?v=0R7wpcw1Z4A

I

Nos arrumos da alma encontra-se um entulho que não espera sindicância. Todo o vento haurido conspira desde o passado, amontoa-se no estertor dos amanhãs desembaraçados. Conspira, com o verbo gasto dos vultos que se sobrepõem à lava arrefecida esgrimida pelo vulcão nativo. 

II

Nos escombros que esperam inventário, alinham-se desordenadamente as máscaras. Não é intendência saber do paradeiro anterior das máscaras: que palcos transgrediram, a que circos se emprestaram, os rostos de que foram disfarces. A apatia condenou as máscaras ao esquecimento. Essa é a serventia dos escombros. 

III

Na noite órfã, o sono perdeu para a rebeldia da insónia. Os patamares ouvem as preces murmuradas nos sonhos. O luar recebe nas mãos as participações da angústia. Os depoentes esperam que a lua seja generosa. Esperam que a lua enxague a pele torturada pela angústia. 

IV

As casas avistam-se desde a cumeada, estão longe. Iluminadas pela luz pública que ainda não desacompanhou a noite. O casario dava para palcos variados, por poucas que sejam as almas habitantes. A neve tardia arrefece o sangue dos aldeões, exilados no conforto das lareiras. Joga-se o tempo contra a malha da Primavera que é cúmplice do Inverno. O frio demove a participação na rua. A aldeia é um ermo. Em uníssono com a velhice média dos aldeões. 

V

O casal de idosos entrelaça as mãos enquanto o pequeno-almoço tarda. Permanecem em silêncio, os olhares de cada um tomando destinos diferentes. As mãos antes frias começam a aquecer. Eles não precisam de palavras. Os dedos que se afagam mutuamente são o idioma que precisam. 

VI

Dizia: “os filhos são os adamastores que arrancamos de dentro de nós, a verdade que nos falta contar antes de sermos reféns do tempo.” Tanto tempo depois, ainda não conseguia perceber se concordava. Os dentes do tempo mordem a noite anciã, como se fôssemos contrariados a caminho da velhice. Suamos nesta biblioteca onde tatuamos o sangue hereditário. O resto, “não fica por nossa conta”. Como se soubesses ser profeta.

Sem comentários: